Isto não é propriamente um blogue. É apenas um espaço para expandir trabalhos que, pela sua dimensão, tornem fastidiosa a sua leitura no Memórias.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A Propósito da Guerra


Observações sobre a Palestina

No início do século XX viviam na Palestina cerca de 25 mil judeus e 650 mil árabes. As grandes imigrações de judeus rumo à Palestina começaram a partir da Primeira Guerra Mundial e aumentaram com os sobreviventes do holocausto nazista ocorrido na Europa.
Para aqueles que nutriam esperanças na Terra Prometida, o primeiro-ministro inglês Winston Churchill anunciava para o futuro Estado de Israel: “passo a passo, instituições representativas a conduzirão ao pleno auto-governo, porém os filhos dos nossos filhos morrerão antes que isso possa se tornar uma realidade”.
No início da década de 1930, era criado o primeiro grupo terrorista da Palestina, o Irgun, uma facção radical do Haganah, organização paramilitar islaelita, que tinha como objectivo acelerar a criação do Estado de Israel à força e expulsar dos povoados palestinos aqueles que se recusassem a vender suas terras aos sionistas.
Em 1936 os árabes da Palestina iniciam uma revolta nacionalista. David Ben-Gurion, criador do corpo armado israelita Haganah , reconhece a natureza da revolta: “na nossa argumentação política exterior minimizamos a importância da oposição que nos é feita pelos árabes. Entre nós não devemos ignorar a verdade de que politicamente nós somos os agressores e eles estão a defender-se. O país é deles, porque o habitam, enquanto que nós queremos vir-nos estabelecer aqui, o que na sua opinião significa que lhe queremos usurpar a sua terra, sem termos sequer entrado ainda”. A revolta árabe foi esmagada pelos ingleses com excesso de brutalidade, de acordo com Noam Chomsky, no seu livro “The Fateful Triangle”.
No dia 29 de Novembro de 1947, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprova a resolução do estabelecimento de um Estado Judeu na Palestina. No dia 14 de maio de 1948, expirado o mandato britânico da Palestina, o Estado de Israel declara independência, e desde então, a Palestina ficaria dividida em três partes, uma formando o recém-criado Estado Judeu e as outras duas, Faixa de Gaza e Cisjordânia, que deveriam formar um Estado Palestino, de acordo com uma resolução das Nações Unidas, acabaram virando campos de refugiados árabes.
Em Abril de 1948, comandantes dos grupos Irgun, Stern Gang e Haganah se reunem e combinam uma acção para massacrar a população de agricultores da aldeia árabe de Deir Yassin, localizada a cinco quilómetros de Jerusalém. A acção, denominada “Unidade”, pois reunia as três principais milícias israelitas, foi responsável pelo assassinato de 254 pessoas, cujos corpos foram mutilados e jogados num poço.
Casas foram dinamitadas. O governo de Israel considerou o massacre uma vitória na guerra de conquista da Palestina. O massacre de Deir Yassin é considerado um dos principais motivos do êxodo de dezenas de milhares de palestinos da sua própria terra. O Irgun, a Stern Gang e a Haganah se unem mais tarde para formar as Forças de Defesa de Israel.
O principal líder da Irgun e articulador do massacre de Deir Yassin, foi Menahem Begin, que mais tarde se tornaria primeiro-ministro de Israel, com o apoio do amigo Yitzhak Shamir, líder do grupo de extermínio Stern Gang. Shamir seria por duas vezes primeiro-ministro de Israel. Begin ganharia o Prémio Nobel da Paz em 1978, ano em que foram anexados territórios do Líbano. Em 1981, Begin anexa também as Colinas de Golã, territórios da Síria e do Líbano, ampliando o território israelita. Foi neste período que surgiu o Hezbollah, um grupo de resistência libanês, que defendia a soberania do Líbano contra a invasão israelita.
Os massacres aos vilarejos árabes continuaram nas décadas seguintes, firmando a ocupação sistemática da Palestina pelos israelitas e forçando o êxodo de milhares de árabes para os campos de refugiados de Gaza e Cisjordânia. Desta forma, o Estado de Israel apresentava o sinal de soberania e poder sobre os árabes, cuja supressão era um objectivo para a consolidação de um projecto sionista de expansão territorialista. Diante de tanta violência, vale lembrar uma observação da ex-líder sionista Golda Meir: “Eles não são seres-humanos, não são gente, eles são árabes”.
Em Junho de 1982, Israel invade o Líbano e bombardeia a capital Beirute por dois meses. Em Setembro do mesmo ano, o primeiro-ministro israelita Ariel Sharon, ordena soldados da unidade especial de comando israelita “Sayyeret Matkal” a entrarem em Beirute para liquidar os “ninhos de terroristas”, com uma lista de 120 nomes de militantes palestinos e seus respectivos endereços. Todos os suspeitos foram assassinados com um tiro na nuca.
Ainda não satisfeito, Sharon ordena o ataque aos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, na parte oeste de Beirute, massacrando cerca de três mil civis palestinos, segundo a Cruz Vermelha. A ONU condenou o massacre, classificando-o como “um ato de genocídio”, onde foram usadas bombas de fósforo branco, que causaram terríveis ferimentos em milhares de pessoas. Estas armas químicas foram proibidas pela Convenção de Genebra, mas são produzidas e comercializadas pelos Estados Unidos ainda hoje. O massacre de Sabra e Chatila é detalhadamente descrito pelo jornalista francês Alain Ménargues no livro “Les Secrets de la Guerre du Liban”. Que tal se o Tribunal da Haia julgasse os crimes cometidos por Sharon, assim como julgou os de Milosevic?
Dois jornalistas norte-americanos narraram o horror do que viram em Sabra e Chatila, após o massacre: “Quando lá entrámos, em 18 de Setembro, vimos corpos em toda a parte. Fotografamos vítimas que tinham sido mutiladas com machados e facas. Outras tinham cabeças esmagadas, olhos arrancados, gargantas cortadas e membros dilacerados, além de pele arrancada dos próprios corpos". O grande intelectual judeu Yeshayahu Leibowitz (falecido em 1994), chegou a declarar que “o Exército israelita havia se tornado uma tropa nazista-judaica”. O escritor português e prémio Nobel José Saramago fez declarações semelhantes, após os massacres.
Em 1996, Israel realiza maciços ataques aéreos e de artilharia às posições da guerrilha nos subúrbios de Beirute, matando centenas de civis. Em Julho de 2006, em represália há oito soldados israelitas mortos e dois capturados pela guerrilha islâmica, Israel responde com a maior acção militar no Líbano desde os massacres de 1982 , na operação nomeada “Recompensa Justa”, um conflito que deixou 1.500 mortos e destruiu parte importante da infraestrutura libanesa, além de deixar desabrigados perto de 900 mil libaneses.
Portanto, as décadas que sucederam ao massacre de Deir Yassin foram de extrema violência contra o povo palestino que ocupava o território preterido pelos sionistas. Cada massacre tinha o seu requinte de crueldade, e com o passar dos anos, com armas cada vez mais potentes e precisas. O apoio incondicional dos Estados Unidos, dava a Israel o carácter de potência bélica, e com um exército moderno, armas de alta tecnologia e um aparato nuclear contando de dezenas de ogivas, poderiam ameaçar não somente a Palestina, mas todo o mundo árabe, e finalmente construir, com o extermínio do povo inimigo, o Estado tão sonhado, a partir da posse de todo o seu território.
Como foi bem citado num recente texto publicado pela Pravda, grande parte do povo judeu não é responsável pelo sionismo, muito menos pelas acções criminosas do Estado de Israel. No entanto, é incompreensível o apoio de alguns ao extermínio da população da Palestina, como uma atitude natural para a consolidação de um pretensioso direito de posse.
Para isolar os palestinos das “terras israelitas”, foi iniciado em Julho de 2002, a construção de uma série de muros de concreto fortificados de 8 metros de altura, cercas electrificadas em dupla faixa de 50 metros de largura, fossos e barreiras, em 700 km de extensão, cortando vilas e propriedades palestinas. O Muro da Cisjordânia, como é conhecido, foi condenado pela Corte Internacional de Justiça de Haia, em Julho 2004. Sobre o tratamento dispensado aos palestinos, por parte do governo de Israel, Saramago diz ser um “Apartheid moderno”.
Em detrimento da guerra, escreveu Nietzsche, “ela faz estúpido o vencedor e maldoso o derrotado”. Vivendo na periferia do poder, oprimidos e subjugados, sofrendo da marginalização e da barbárie, os palestinos criam estratégias de confronto e superação contra os seus opressores. Foi entre tantos massacres que surgiram os grupos terroristas árabes, alvo predilecto da imprensa imperialista, que presta inestimáveis serviços aos detentores do poder. Estes grupos surgiram num ambiente de exílio e morte, como única alternativa de resistência.
“Não estou a defender os excessos árabes. Preferia que eles tivessem escolhido a via da não-violência para resistir contra aquilo que eles consideram uma invasão do seu próprio país. De acordo com os modelos normalmente aceites de certo e de errado, nada pode ser dito contra a resistência árabe em face de infortúnios arrasadores”. São palavras de Mahatma Gandhi, a respeito dos conflitos na Palestina, em 1938, citado em “A Land of Two Peoples”.
A passividade da ONU e o apoio e patrocínio dos Estados Unidos, asseguram as acções criminosas de Israel, que as considera legítimas, como “direito de autodefesa”. Bastante interessante foi uma colocação do intelectual Noam Chomsky de “como seria a reacção, se qualquer país que não usufrua das benesses de Washington efectuasse tais atrocidades?”.
Esperamos pelo bem dos judeus e palestinos, mas quando chegarmos ao afinal, quem será capaz de determinar o peso específico de todas essas lágrimas infinitas?

Fábio Rossano Dári
http://port.pravda.ru/mundo/25933-0/

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Mia Couto - E se Obama fosse africano?


Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.
Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.
Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.
Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: "E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.
E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?
1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.
2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.
3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.
4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).
5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.
6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.
Inconclusivas conclusões
Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.
Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.
A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.
Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.
No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.
Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Janeiro Geadeiro


É apenas um dos adágios populares que caracteriza o primeiro mês do ano. Já assim era há muitos anos, lá pelo primeiro lustro da década de sessenta, no Século passado.
Como referi aqui, o Posto Escolar Misto de Cavenca acolhia os jovens do lugar que integravam as quatro classes do ensino primário, hoje designado primeiro ciclo do ensino básico, e também os do lugar de Lijó, com excepção daqueles que “desertaram” para a Gave que ficava mais ou menos equidistante embora já se situasse no vizinho concelho de Melgaço.
Entre outros, integravam o grupo de estudantes de Lijó os meus primos, dois meninos mimados e cagarolas que quase todos os dias se queixavam à mãe das “maldades” que lhes faziam os “compagnons de route”.
De tal modo que, por acordo entre as famílias, passaram diariamente a ser “escoltados” por um dos primos de Cavenca, um pouco mais velhos e que, por isso, “impunham” respeito no grupo.
Para mim não era nenhum sacrifício, pelo contrário, estava sempre pronto para os acompanhar, principalmente porque em casa dos meus tios havia sempre boa comida e camas frescas, a contrastar com a invariável escassez alimentar e os velhos frangalhos que guarneciam os catres mal amanhados da casa dos meus pais.
Naquele dia, um ensolarado e lindo dia de Janeiro, foi a minha vez. Fora um dia magnífico, cheio de sol resplandecente e, no final das aulas, que se desdobravam pelos dois períodos do dia e terminavam pelas cinco horas da tarde, lá vou eu, ladeira abaixo, a velha e sebosa sacola com os objectos escolares a tiracolo, andrajoso e… descalço.
Distam os dois lugares cerca de dois quilómetros e, de Cavenca, situado a uma cota entre seiscentos e setecentos metros, a Lijó, cuja cota anda pelos trezentos e cinquenta metros, é quase sempre a descer. Escusado será dizer que em sentido contrário se dá o inverso.
Os caminhos eram bem conhecidos do grupo que ora se deslocava pelo monte do Teso, ora atalhava pelos Estieiros e tudo decorreu como habitualmente, isto é, fazer os deveres, desenvolver algumas brincadeiras e actividades domésticas tais como levar a velha Carriça a beber e regressar num galope desenfreado quais índios em plena pradaria, cear e… cama, que no outro dia há que recomeçar tudo.
No dia seguinte, manhã bem cedo, levantamo-nos e, como de costume, minha tia mandou-nos buscar água fresca à fonte da Aveleirinha para confeccionar a água de unto que nos iria sustentar até ao meio-dia. Foi nesse pequeno percurso que me apercebi da imensa camada de geada que se tinha formado no solo durante a noite, traiçoeiramente, silenciosamente, em segredo, branca, brilhante e… gelada!
Senti-a açoitar-me as encortiçadas solas dos pés descalços mas não me intimidei. Aqueles mesmos pés já tinham pisado gelo, neve, pedras, tojo e toda a casta de abrolhos, até aberto ouriços dos castanheiros para lhes arrancar as castanhas quando teimavam em ficar sérios e carrancudos sem largar o precioso fruto.
Depois do frugal pequeno-almoço pusemo-nos a caminho. Estava convencido que após uns metros de caminhada o sangue havia de fluir e aquecer as extremidades geladas mas não. Quanto mais pisava o solo gelado mais frio sentia nos pés. Quando começamos a subida dos Estieiros as dores já eram insuportáveis.
Ao lado do caminho a água no rego rumorejava feliz, indiferente ao meu sofrimento, e casualmente mergulhei um pé… Foi agradável, a água estava quente, mergulhei os dois, deixei que o gelo derretesse. Assim que senti o alívio das dores recomeçamos a caminhada. Os meus companheiros observavam consternados a minha titânica luta contra o frio mas nada podiam fazer. Por mais algumas vezes mergulhei os pés na água que mais depressa arrefeciam quando trilhava os cristais de gelo na terra dura redobrando as dores.
O percurso era agora um estreito carreiro, pelo meio do pinhal, e já não havia mais cursos de água por perto. Chorei com as mágoas dos pés dormentes e gelados mas continuei a caminhada. Vencemos a última calçada e chegamos finalmente à Escola, já o sol começava a aquecer o planeta e… os meus sofridos pés.
O sangue recomeçou então a circular por todas as extremidades e quando chegou a hora de entrar para as aulas já o pior tinha passado.
E que bem se estava agora na frigidíssima sala com os pés suspensos da confortável carteira…