Isto não é propriamente um blogue. É apenas um espaço para expandir trabalhos que, pela sua dimensão, tornem fastidiosa a sua leitura no Memórias.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Carta de Despedida

Se por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo o que penso mas pensaria tudo o que digo.
Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam.
Dormiria pouco, sonharia mais, porque entendo que por cada minuto que fechamos os olhos perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os outros param, acordaria quando os outros dormem. Ouviria quando os outros falam e como desfrutaria um bom gelado de chocolate !
Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto não apenas o meu corpo, mas também a minha alma.
Meu Deus, se eu tivesse um coração, escreveria o meu ódio sobre o gelo e esperava que nascesse o sol.
Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas de um poema de Benedetti e uma canção de Serrat seria a serenata que eu ofereceria à Lua!
Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas...
Meu Deus, se eu tivesse um pouco de vida... não deixaria passar um só instante sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas.
Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo amor..
Aos homens provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar!
A uma criança,
dar-lhe-ia asas,
mas teria de aprender
a voar sozinha.
Aos velhos
ensinar-lhes-ia
que a morte não chega com a velhice,
mas com o esquecimento.
Aprendi que um homem só tem direito a olhar outro de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se...
Tantas foram as coisas que aprendi com vocês, os homens !
Aprendi que todo o mundo quer viver em cima da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está em subir a encosta...
Aprendi que, quando um recém-nascido aperta,
com a sua pequena mão, pela primeira vez,
o dedo de seu pai,
o tem agarrado para sempre.
São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas não me irão servir realmente de muito, porque, quando me guardarem dentro dessa maleta, infelizmente
estarei a morrer...

Gabriel Garcia Marques
Copiado daqui

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Víctor Jara

 
Relato de um dia sangrento no Estádio do Chile

04.10.2009 Source: URL: http://port.pravda.ru/mundo/28081-relatochile-0

por Manuel Cabazas


"Os detidos que não comiam nem bebiam há três dias vomitavam sobre os cadáveres dos seus camaradas estendidos por terra... A certa altura, Victor desceu para perto da porta por onde entravam os presos e de lá se dirigiu ao comandante. Este olhou-o e fez o gesto de quem toca guitarra.
Victor sorriu tristemente, dizendo que sim com a cabeça. O militar sorriu por sua vez, contente com a sua descoberta. Chamou quatro soldados para imobilizarem Victor e ordenou que se colocasse uma mesa no centro da 'cena', para que todos assistissem ao espetáculo que se iria desenrolar à sua frente. Levaram Victor e mandaram-no pôr as mãos em cima da mesa. Nas mãos de um oficial, um machado surgiu (dias depois, este oficial declarava à imprensa: "Tenho duas belas crianças e um lar feliz"). De uma pancada seca, cortou os dedos da mão esquerda; depois, nova pancada e foi a vez dos dedos da mão direita. Ouviram-se os dedos a caírem sobre o tampo de madeira; vibravam ainda. O corpo de Victor tombou inesperadamente. Ouviu-se o urro colectivo de 6000 detidos. Esses 12 000 olhos viram o mesmo oficial lançar-se sobre o corpo do artista gritando: "Canta agora, para a puta da tua mãe!", e continuava a agredi-lo com pancadas.
Nenhum dos detidos se poderá esquecer da face desse oficial, de machado na mão, os cabelos em desordem... Victor recebia os pontapés enquanto o sangue jorrava das suas mãos e a cara se tornava roxa. De repente, Victor tentou penosamente levantar-se e, como um sonâmbulo, dirigiu-se para a bancada, os seus passos pouco firmes, os joelhos trémulos e ouviu-se a sua voz gritar: "Vamos fazer a vontade ao comandante!"
Momentos depois conseguiu endireitar-se e, levantando as suas mãos encharcadas de sangue, numa voz de angústia, começou a cantar o hino da Unidade Popular, que toda a gente tomou em coro.«Enquanto, pouco a pouco, 6000 vozes se levantavam, Victor, com as suas mãos mutiladas, marcava o compasso. Viu-se um estranho sorriso sobre o seu rosto...
Era demais para os militares; dispararam uma rajada e Victor dobrou-se para a frente, como que fazendo uma reverência perante os seus camaradas. Outras rajadas partiram das metralhadoras, mas estas dirigidas para aqueles que tinham cantado com Victor. Houve uma verdadeira ceifa de corpos, caindo crivados de balas. Os gritos dos feridos eram aterrorizadores. Mas Victor não os ouviu. Estava morto."
"Um exemplo de vida, um homem em todo o sentido da palavra, nascido em Lonquén no ano de 1932 em uma família pobre, 5 irmãos. Desde pequeno teve que lutar para torcer o destino e a sorte da sua vida. Numa infância sofrida foi esculpindo sua personalidade forte e decidida, para lutar contra as injustiças de um sistema que não dá muita esperança para quem nasce na miséria."
Foi assassinado por militares em Setembro de1973, por conta do golpe contra o povo chileno. As canções de Victor Jara são inspirações para a resistência dos trabalhadores ainda hoje.