Isto não é propriamente um blogue. É apenas um espaço para expandir trabalhos que, pela sua dimensão, tornem fastidiosa a sua leitura no Memórias.

domingo, 30 de novembro de 2008

Toponímia de Cavenca


Temos por hábito não questionar os nomes através dos quais relacionámos tudo que nos rodeia porque nos acostumámos desde muito cedo a ouvi-los, escrevê-los e relacioná-los com pessoas, com lugares, com coisas. E se de algum modo nos ocorre tentar saber o porquê logo desistimos porque assim é que está bem e dificilmente conseguiríamos arranjar alternativa melhor.
Cavenca, a minha aldeia natal, detém uma toponímia pouco comum cuja origem é desconhecida, penso eu, de todos os “cavenquenses” e da generalidade das pessoas, precisamente porque os nativos se conformam com o nome e os outros não estão para se incomodar com isso. Porém, a minha curiosidade levou-me a efectuar algumas pesquisas e o resultado é o seguinte:
A toponímia de Cavenca é formada pelo vocábulo de origem latina “covea”, que significa “cova” e deu também “cavus”, que significa “oco”, “covo” ou “concavo”, podendo ainda significar "vale", "depressão", ao qual foi adicionado o sufixo de origem germânica “enc” que exprime pertença, presença ou participação.
Palavras com a mesma raiz e origem há muitas e traduzem, em geral, acções e nomes de lugares: Cavada, Cavadas, Cavadinha, Cavadinho, Cavado, Cavados, Cavanca, Cavenca, Cuenca, Covenca, cava, cavar, escava, escavar…
Mas então, qual a razão de Cavenca ter essa toponímia? Não podia ser outra qualquer?
A explicação, melhor que mil descrições que eu fizesse da configuração do terreno, é a imagem que se segue, uma fotografia aérea propriedade de DAPFOTO (http://www.dapfoto.com).

Como se pode ver, Cavenca situa-se na vertente sudoeste de um profundo vale por onde escorre o Rio Pequeno.
A origem do Rio Pequeno encontra-se na Cabeça da Fraga, a cerca de 1000 metros de altitude, recortando-se a Corga da Calhe abruptamente até à cota 800, local onde se dá a junção de outros cursos de água, no sítio designado por Portacerdeira, ou Porta Cerdeira (de cerejeira ou cerdo?) e segue depois de forma um pouco mais suave até se juntar ao Rio Mouro ao fundo de Lijó, sensivelmente à cota 350, o que permite avaliar
o grande declive dado que o percurso será pouco superior a três quilómetros.
Lugares com o mesmo nome, que eu conheça, existem três: o lugar de Cavenca, freguesia de Riba de Mouro, concelho de Monção, Cavenca, na freguesia de Longos Vales, ainda em Monção, cuja orografia desconheço mas que, pelas informações obtidas, corresponde à descrição aqui apresentada e Cavenca, no município de Cerdedo (de cerejal) em Pontevedra, que se situa na aba norte de um monte com o mesmo nome, no vale do Rio Seixo.

Fontes:
MEYER Paul et THOMAS Ant., Romania, Paris,1906
SARMENTO, Francisco Martins, Revista de Guimarães, IX-III-MDCCC, p. 76
VARELA, Carlos Solla, Dous Estudos Sobre a Comarca de Cerdedo, IANUA 1 (2000)

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Documento dos Nove


Documento dos Nove
(7-VIII-1975)



Camarada:
O documento anexo, dirigido a S. Ex.ª o Senhor Presidente da República e entregue para conhecimento ao Senhor Comandante do COPCON, dado o seu carácter de urgência e a dificuldade de o discutir com os camaradas dispersos por todo o País, para averiguar das sua eventual adesão ao seu conteúdo, foi assinado apenas por aqueles que o elaboraram.
Sugere-se assim que todos os militares que concordem com o seu conteúdo o subscrevam igualmente, remetendo pessoal ou colectivamente, conhecimento desse facto a S. Ex.ª o Senhor presidente da República.
Os camaradas que subscreveram o ORIGINAL, membros do CONSELHO DA REVOLUÇÃO, foram:
Cap. Vasco Lourenço
Maj. Vítor Alves
Maj. Canto e Castro
Brig. Franco Charais
Cap. De Fragata Vítor Crespo
Brig. Pezarat Correia
Maj. Costa Neves
Cap Sousa e Castro
Maj. Melo Antunes

NOTAS:
1. Considera-se muito importante que a recolha de assinaturas seja feita com a maior rapidez por forma a que os documentos assinados provenientes das unidades sejam presentes a S. Ex.ª o Senhor presidente da República no mais curto prazo possível (entre 2 a 4 dias)
2. As assinaturas deverão, em caso de ilegibilidade, ser acompanhadas, à margem, de identificação do camarada.
3. Após recolha das assinaturas os exemplares assinados deverão ser entregues por portador no seguinte endereço:
CONSELHO DA REVOLUÇÃO
(edifício do antigo Ministério do Ultramar)
Av. Ilha da madeira – Restelo
Piso 6 – Sala 647



Senhor Presidente da Republica
Excelência,

1. Os recentes desenvolvimentos da situação política em Portugal, incluindo o que tem vindo a processar-se no interior das Forças Armadas, decidiram um grupo de oficiais a tomar um a posição crítica relativamente aos acontecimentos mais em foco no desenrolar dosa diversos episódios que têm pautado a conturbada vida política dos portugueses nas últimas semanas.
Parece a esses oficiais que se chegou a um momento de se clarificarem posições políticas e ideológicas, terminando com ambiguidades que foram semeadas e progressivamente e alimentadas por todos aqueles que, dentro e fora das Forças Armadas, estavam interessados no descrédito de uns tantos para melhor poderem fazer valer e impor as suas ideias.
Recusam, à partida, os oficiais que por esta forma se manifestam o epíteto de «divisionistas» com que têm tentado denegri-los, tendo-se chegado ao escandaloso despudor de se sugerir a sua expulsão das FA. Eles não abdicam do seu direito de crítica, direito esse que, num tão grave momento da vida nacional, assume o carácter de dever patriótico.
2. O Movimento das Forças Armadas nasceu do espírito e do coração de um punhado de oficiais democratas, patriotas e antifascistas que decidiram por termo a uma longa noite fascista e iniciar com todo o povo português, uma nova caminhada de paz, progresso e democracia, na base de um Programa Político universalmente aceite e respeitado. Sabe-se como as grandes movimentações das massas populares abriram novas expectativas à revolução democrática iniciada em 25 de Abril de 1974 e como, a partir sobretudo das eleições gerais para a Assembleia Nacional Constituinte, a via para o socialismo passou a ter carácter irreversível.
O «Programa do Movimento das Forças Armadas» era o elemento teórico da Revolução democrática mas continha já o essencial das propostas políticas que apontavam parta um dado modelo de socialismo. Em virtude disso, o pensamento de esquerda subjacente à elaboração do «Programa» não foi nada ferido pelos chamados «avanços do processo revolucionário», onde e quando esses «avanços» corresponderam efectivamente à destruição das estruturas políticas, económicas e sociais do antigo regime, e foram na prática substituídas por novas estruturas operativas e actuantes, base de uma nova organização político-social de raiz socialista.
Infelizmente, porém, quase nunca se verificaram transformações deste tipo.
Assistiu-se, sim, ao desmantelamento de grandes grupos financeiros e monopolistas; mas, paralelamente, e à medida que as nacionalizações se sucediam (a um ritmo impossível de absorver, por muito dinâmico que fosse o processo e por maior que fosse o grau de adesão do povo, sem grave risco de ruptura do tecido social e cultural preexistente – é o que se verifica actualmente), foi-se assistindo à desagregação muito rápida das formas de organização social e económica que serviam de suporte a largas camadas da pequena e média burguesia, sem que fossem criadas novas estruturas capazes de assegurarem a gestão das unidades produtivas e dos circuitos económicos e de manterem o mínimo indispensável de normalidade nas relações entre todos os portugueses.
Entretanto, e paralelamente, verifica-se a progressiva decomposição das estruturas do Estado. Formas selvagens e anarquizantes de exercício do poder foram-se instalando um pouco por toda a parte (até no interior das FA) retirando proveito dessa desordem as organizações ou formações partidárias mais experientes e ávidas do controlo dos vários centros de poder. O MFA, que inicialmente se havia afirmado como suprapartidário, viu-se cada vez mais enleado nas manipulações politiqueiras de partidos e organizações de massas, acabando por se ver comprometido com determinada projecto político que não correspondia nem à sua vocação inicial nem ao papel que dele esperava a maioria da população do país: o de guia e condutor dum processo de transformação profunda da sociedade portuguesa, com um claro projecto político de transição para o socialismo, independente dos partidos, embora sem dispensa do seu concurso e com a mais ampla base social de apoio possível.
3. O País encontra-se profundamente abalado, defraudado relativamente às grandes esperanças que viu nascer com o MFA. Aproxima-se o momento mais agudo de uma crise económica gravíssima, cujas consequências não deixarão de se fazer sentir ao nível de uma ruptura, já iminente, entre o MFA e maioria do povo português. Alarga-se, dia a dia, o fosso aberto entre um grupo social extremamente minoritário (parte do proletariado da zina de Lisboa e parte do proletariado alentejano), portador de um certo projecto revolucionário, e praticamente o resto do País, que reage violentamente às mudanças que uma certa «vanguarda revolucionária» pretende impor, sem atender à complexa realidade histórica, social e cultural do povo português.
Finalmente, a fase mais aguda da descolonização (Angola) chega, sem que se tenha tomado em consideração que não era possível «descolonizar», garantindo uma efectiva transição pacífica para uma verdadeira independência, sem uma sólida coesão interna do poder político, e sem, sobretudo, se ter deixado de considerar que a «descolonização» devia continuar a ser, até se completar, o principal objectivo nacional. Vemo-nos agora a braços com um problema em Angola que excederá provavelmente a nossa capacidade de resposta, gerando-se um conflito de proporções nacionais que poderá, a curto prazo, ter catastróficas consequências para Portugal e para Angola. O futuro de uma autêntica Revolução em Portugal está, em todo o caso, comprometido, em função do curso dos acontecimentos em Angola, à qual nos ligam responsabilidades históricas inegáveis para além das responsabilidades sociais e humanas imediatas para com os portugueses que por lá trabalham e vivem.
4. Todo este grave conjunto de aspectos da vida nacional tem vindo sistematicamente a ser escamoteados e, mais do que isso, profundamente adulterados, por larga parte dos meios de comunicação social, através de um rígido controlo partidário que sobre eles se exerce – particularmente dos nacionalizados – assistindo-se hoje ao degradante e vergonhoso espectáculo de corrida de uma boa parte da população aos noticiários de emissoras estrangeiras sobre o nosso país.
Coimo se isso não fosse já bastante, foi-se ao cúmulo de preparar um projecto de diploma que, ao instituir uma «comissão de análise» (e porque não uma «comissão de censura?» servirá de ferro de lança apontada aos últimos e resistentes baluartes da imprensa livre neste país.
5. Não se pretende esgotar, neste documento, a crítica à acção do regime instaurado após o 25 de Abril ou, em especial, das instituições após o 28 de Setembro de 1974. Recentemente, muitas contribuições críticas têm vindo a público que, no essencial, esclarecem sobre as debilidades fundamentais do actual regime.
Importa ao grupo de oficiais que entendeu chegar o momento de tomar posição, definir-se tão claramente quanto possível, perante o povo português e relativamente às várias instâncias de poder político e, em particular, ao MFA. E assim, entendem deixar expresso o seguinte:
¬ Recusam o modelo de sociedade socialista do tipo europeu-oriental a que fatalmente seremos conduzidos por uma direcção política que crê, obstinadamente, que uma «vanguarda» assente numa base social muito estreita fará a revolução em nome de todo o povo, e que tem, na prática, tolerado todas as infiltrações dessa «vanguarda» nos centros de poder político e nas estruturas militares.
O dirigismo burocrático típico de regimes totalitários é frontalmente negado por aqueles que lutaram no passado contra o fascismo e coerentemente se colocaram agora numa perspectiva de luta contra novas formas de totalitarismo.
¬ Recusam o modelo de sociedade social-democrata em vigor na Europa Ocidental, porque acreditam que os grandes problemas da sociedade portuguesa não podem ser superados pela reprodução no nosso país dos esquemas clássicos do capitalismo avançado.
Seria um erro trágico, no momento em que tudo leva a crer que se avizinha uma crise geral e global do capitalismo, que se tentasse, mesmo à custa de benefícios reais imediatos m as manifestamente ilusórios, a repetição das experiências sociais-democratas.
¬ Lutam por um projecto político de esquerda, onde a construção de uma sociedade socialista ¬ isto é, uma sociedade sem classes, onde tenha sido posto fim à exploração do homem pelo homem ¬ se realize aos ritmos adequados à realidade social concreta portuguesa, por forma a que a transição se realize gradualmente, sem convulsões e pacificamente.
Este objectivo só será atingido se, à teoria leninista da «vanguarda revolucionária», impondo os seus dogmas políticos de forma sectária e violenta, se opuser a estratégia alternativa da formação dum amplo e sólido bloco social de apoio a um projecto nacional de transição para o socialismo.
Este modelo de socialismo é inseparável da democracia política. Deve ser construído, pois, em pluralismo político, com os partidos capazes de aderir a este projecto nacional. Este modelo de socialismo é inseparável, ainda, das liberdades, direitos e garantias fundamentais. Não se nega que possam sofrer transformação do seu conteúdo à medida do avanço do processo histórico. No entanto, uma concepção revolucionária de socialismo, para um país europeu como Portugal, inserido no contexto geopolítico e estratégico em que se encontra, e com o passado histórico e cultural que é o seu, não desvincula o problema fulcral da liberdade humana do da construção do socialismo.
¬ Reclamam e lutam por uma autêntica independência nacional (tanto política como económica) o que significa a aplicação coerente de uma política externa adequada às nossas realidades históricas culturais e geopolíticas, o que implica:
¬ abertura de relações em todos os países do mundo, na base da igualdade, respeito mútuo e não ingerência nos assuntos internos de cada país, tendo em conta a necessidade de independência relativamente às grandes potências:
¬ manutenção das nossas relações com a Europa, reforçando e aprofundando as relações com certos espaços económicos (CEE, EFTA);
¬ franca abertura em relação ao Terceiro Mundo (com particular relevo para as nossas antigas colónias) e países árabes;
¬ aprofundamento das relações com os países do leste europeu.
¬ Lutam por recuperar a imagem primitiva do MFA, no sentido de que o MFA só teve aceitação universal enquanto aparelho autónomo da produção política e ideológica.
Assim se explica o consenso que se formou em torno do seu Programa. Considera-se indispensável, pois, para a resolução correcta da crise gravíssima que o país atravessa, que o MFA se afirme suprapartidário como desenvolva uma prática política realmente isenta de toda e qualquer influência dos partidos. Só assim reunirá condições para recuperar a sua credibilidade e cumprir a sua vocação histórica de árbitro respeitado e motor do processo revolucionário.
Só assim, também, poderá esperar que um grande bloco social de apoio, englobando proletariado urbano e rural, pequena burguesia e largos estratos da média burguesia (incluindo técnicos e intelectuais progressistas) possa ainda formar-se, criando a base de sustentação indispensável à realização prática das grandes transformações por que deve passar a sociedade portuguesa.
¬ Recusam a instituição de uma política que assentem em medidas e práticas demagógicas, qualquer que seja o seu carácter, que mais não são do que a prática da real incapacidade de equacionar os grandes problemas da sociedade portuguesa e de lhes encontrar soluções adequadas e justas, termos de uma política de equilíbrio e verdade, única forma legítima de obter uma ampla mobilização das bases sociais de apoio.
¬ Entendem que a tão falada questão da «crise de autoridade» reflecte a questão mais geral do «poder político». Onde se situa o poder político? Quem é o seu detentor? Como faz uso dele?
Julga-se que a questão do poder não é tanto o problema do poder ao nível das instâncias governativas como ao nível do MFA. Isto é: a questão do poder é a questão do poder no interior do MFA.
A clarificação deste problema é tarefa prioritária. Sem isso, não é possível atacar o fundo do problema da organização do Estado, evitando a sua completa ruína. As divergências surgidas no seio do MFA são o reflexo de projectos ideológicos distintos. Projectos incompatíveis entre si, pois não é possível conciliar uma concepção totalitária de organização da sociedade com uma concepção democrática e progressista ou ainda com vagas concepções populistas de feição anarquizante.
É necessário denunciar vigorosamente o espírito fascista subjacente ao projecto que, dizendo-se socialista, acabará na prática numa ditadura burocrática dirigida contra a massa uniforme e inerte dos cidadãos dum país.
É necessário repelir energicamente o anarquismo e o populismo que conduzem inevitavelmente à catastrófica dissolução do Estado, numa fase de desenvolvimento da sociedade em que, sem Estado, nenhum projecto político é viável.
¬ A resolução da crise do poder no interior do MFA ¬ e, portanto, da questão do poder ao nível do Estado ¬ não terá, porém, saída, enquanto tratada apenas ao nível dos diferendos ideológicos. É indispensável, na prática, encontrar solução adequada para o problema da dispersão dos «centros de poder». Sem o mínimo de «unidade de comando» a direcção política revelar-se-á cada vez mais fluida, vagando perdida no mar encapelado de decisões arbitrárias duma 5.ª Divisão do EMGFA, duma Assembleia do MFA, de Assembleias de militares «ad-hoc» reunidas imprevista e misteriosamente, de Gabinetes de Dinamização, do Conselho da Revolução, do COPCON, de Sindicatos, etç. Ao Governo, nestas condições, que espaço de manobra lhe resta e com que autoridade actua? Nenhuns planos poderão ser coerentemente concebidos e aplicados sem um Governo que, por um lado, não deixa margem para dúvidas quanto à sua capacidade de execução do projecto político global definido pelo MFA e que, por outro, seja revestido da autoridade necessária para se fazer obedecer.
6. Em cada dia, a cada hora que passa, multiplicam-se os sinais evidentes duma agitação social que tende perigosamente a alastrar, submergindo o país numa onda de violência incontrolável.
Acumulam-se factores que geram a promoção duma ampla base social de apoio ao regresso do fascismo. E é ridículo dizer-se, como certas formações políticas e certos órgãos de informação, que são «manobras da reacção». O descontentamento. O mal-estar, a angústia, são reais e por demais evidentes e têm a sua causa profunda em erros de direcção política acumulada ao longo dos últimos meses e em desvios graves de orientação no interior do próprio MFA.
Que fazer?
Encontramo-nos em mais uma encruzilhada da História e é ao MFA, uma vez mais, que compete assumir o peso maior das responsabilidades para com o povo português.
É imperioso escolher conscientemente a via para o socialismo, sem violar a vontade da grande maioria dos portugueses conquistando hesitantes ou descontentes pela persuasão e o exemplo. Terá de competir ao MFA, em independência dos partidos políticos, mas tendo em atenção o papel que estes podem e devem representar, definir um projecto político de transição para o socialismo.
É necessário reconquistar a confiança dos portugueses, acabando os apelos ao ódio e as incitações à violência e ao ressentimento. Trata-se de construir uma sociedade de tolerância e de paz e não uma sociedade sujeita a novos mecanismos de opressão e exploração, o que não poderá ser realizado com a actual equipe dirigente, ainda que parcialmente renovada, dada a sua falta de credibilidade e manifesta incapacidade governativa.
É preciso, finalmente, conduzir o País, com justiça e equidade, e segundo regras firmes e estáveis, em direcção ao socialismo, à democracia e à paz.

Dinis de Almeida, Ascensão…, vol. II, pp. 456 - 460

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A Dança das Bruxas


Não era nenhum Adónis mas tinha um cortiço robusto e escarmentado nas lides da vida. Era respeitado e respeitador, conhecido em todo o Alto Minho e até por terras de Barroso aonde se deslocava de tempos a tempos em negócios ou apenas para observar o que de melhor por lá se criava.
As suas pernas atarracadas e fortes, ligeiramente arqueadas, já tinham acumulado centenas, milhares de quilómetros por caminhos e veredas, por vales e montanhas, sob as mais rigorosas inclemências do tempo, quer fizesse sol ou chuva, quer estivesse calor ou frio.
Frequentava todas as feiras das redondezas e sabia avaliar como ninguém as qualidades intrínsecas de qualquer animal doméstico, especialmente gado bovino. O seu olhar arguto identificava melhor que ninguém as potencialidades reprodutoras de um jovem novilho de raça barrosã, que era a melhor para cobrição. O focinho curto, a testa larga e bem armada com grossos e afiados cornos, cachaço proeminente, espessa e farta barbela, peito fundo, ancho e saliente, a espinha recta, forte de quadris, cascos pequenos e rijos, boa umbigueira e graúdos testículos – todos esses atributos eram objecto de uma análise visual muito cuidada, complementada com uma acção inspectiva designada alobeitar(1) porque do bom investimento feito num reprodutor dependiam muitos dos benefícios alcançados ao longo dos anos.
Naquele dia, quando o sol despontou no horizonte, já o Pinto seguia célere e incansável pela estrada de Cabreiro em direcção à Vila dos Arcos de Valdevez. Era dia de feira, um evento quinzenal dos mais importantes da região, onde se reuniam os melhores espécimes de gado além de uma enorme diversidade de artigos de vestuário e do lar, alfaias agrícolas e até mezinhas e unguentos que curavam todas as maleitas.
Mas a paixão do Pinto era o negócio do gado e era nesse sector que deambulava, descontraidamente, observando aqui um vitelo, ali um poldro, acolá um belo garrano, mais além uma conversa animada em torno de uma parelha de esplêndidas vacas piscas.
Por entre os proprietários que ali expunham a sua criação para venda e os curiosos que, como o Pinto, apenas observavam, gravitavam os inconfundíveis negociantes de gado, em regra indivíduos de meia idade, vara de lodo ou junco na mão, chapéu de castor na cabeça e trajando um colete clássico de onde sobressaía o volumoso maço de notas que enchia a gasta carteira de cabedal. Eram autênticas aves de rapina, espécie de correctores de bolsa da actualidade, que determinavam o valor da mercadoria e, pressentindo alguma necessidade de dinheiro mais premente da parte dos vendedores ofereciam pelas suas reses uma importância muito inferior ao valor real.
O negócio iniciava-se quase sempre por uma abordagem aparentemente desinteressada indagando quanto queriam pelo animal. Se o desinteresse fosse genuíno o “negociante” afastava-se. Porém, se o negócio interessava fazia uma oferta, quase sempre pela metade. Discutia-se, havia algumas cedências de parte a parte, até que intervinha um terceiro e dividia a diferença ao meio. Não, não pode ser, é muito, dizia um, é pouco, contrapunha o outro. Até que o intermediário convencido que era possível chegar a um entendimento pegava uma nota das muitas que o negociante transportava na velha carteira e entregava-a ao vendedor. Era o sinal, o resto seria pago na feira seguinte. Mas o necessitado lavrador hesitava, tentava fazer subir a oferta. Contudo, percebendo que tal já não seria possível, agarrava a nota – por consideração ao intermediário – e o contrato ficava selado.
Tão absorto andava o Pinto nas suas lides que nem deu pelo tempo passar. O dia não lhe foi propício para negócios mas recolhera muita informação que lhe seria útil posteriormente e, como o sol já se aproximava do ocaso, era hora de regressar, que ainda tinha muito caminho para percorrer.
Ao passar em Vilela escurecia, em Cabreiro era noite fechada. Para piorar as coisas o tempo mudou bruscamente e grossas e negras nuvens impediam que chegasse à terra a mínima claridade. Estava uma noite escura como breu. Nada que atemorizasse o Pinto. Já tinha passado por situações piores e nunca o impediam de prosseguir. Medo era coisa que nunca sentira.
Passou em Portela de Alvite sem ver vivalma e ataca a serra em direcção a Santa Marinha sem desfalecimento. Aqui viu uma luz acesa em casa de um conhecido e bateu à porta. Um ligeiro mata-bicho deu-lhe forças para continuar. O amigo forneceu-lhe um facho de palha e lume para em caso de necessidade iluminar o caminho ou afastar alguma fera. Não seria necessário mas à cautela era melhor estar prevenido.
Continuou, incansável. Atravessou a ribeira e iniciou a subida pela encosta de Travassô em direcção a Modelos. De repente as coisas complicaram-se, perdeu-se momentaneamente no caminho, voltou atrás, não descortinava o trilho tão conhecido. Atiçou o facho mas uma inesperada rajada de vento deixou-o novamente na mais profunda escuridão. Subitamente uma constelação de luzes acendeu-se à sua volta. Teve então início uma frenética dança com as luzes a rodopiar em torno do caminhante de forma vertiginosa. Tentou, debalde, divisar o que estava a suceder e que figuras misteriosas faziam girar aqueles estranhos luzeiros. Desesperado fez revolutear o cajado que sempre o acompanhava em torno de si mas esse gesto apenas fez que perdesse o contacto com o chão. No meio do torvelinho sentiu-se elevar pelos ares e perdeu-se no espaço.
Um raio de sol iluminou-lhe o rosto. Sentiu a claridade sob as pálpebras e abriu os olhos lentamente. Estava paralisado e transido de frio. Ouvia o rumorejar das águas de um regato próximo mas não via qualquer ribeiro. Olhou à volta e mal lobrigou que pela frente existia somente o vazio de um precipício o qual terminava apenas no invisível curso de água, muitos metros abaixo. Com precaução sentou-se no exíguo patamar da falésia onde se encontrava. Não tinha ferimentos nem lhe faltava nenhum dos seus haveres. Até o cajado e o facho se encontravam intactos junto de si. Lembrava-se vagamente do bruxuleante bailado durante a noite mas não sabia se tinha sido real, ou se fora um sonho, ou meramente fruto da imaginação.
Olhou a paisagem em frente e reconheceu a corga do Vale d’Açoreira, a encosta do Carvalhinho e as coutadas do Coto do Moinho, tudo fronteiro a Cavenca, o lugar de onde partira para a feira mas em sentido oposto. Como teria ido ali parar? E a um local onde ninguém em seu perfeito juízo ousava aceder? Não, aquilo que viu e sentiu na noite anterior não foi sonho nem fruto da sua imaginação, só por artes mágicas é que poderia ter ido acabar ali a caminhada. Se acreditasse em bruxas diria que aquilo fora mesmo bruxedo mas isso estava fora de questão. Sempre se revelara contra essa antiga e inquestionável crença de outras pessoas que afiançavam cegamente a sua existência. Nem mesmo o facto de uma vizinha ter fama de bruxa o fazia mudar de ideia.
A custo conseguiu escalar o rochedo até atingir chão seguro. Já via o casario da aldeia que despertava para mais um dia de labuta. Foi para casa. A única pessoa que encontrou até lá foi a vizinha bruxa que, com um sorriso enigmático e trocista lhe atirou: - Anda que tiveste sorte! Era para darem cabo de ti…hi…hi…hi…

(1) Alobeitar era a designação dada a uma série de operações que consistiam em apalpar o peito e as costelas dos animais, verificar a dentição e a vista, puxar a cauda para um e outro lado… Não existe nos dicionários que consultei.

Coimbra, 15 de Novembro de 2008

terça-feira, 18 de novembro de 2008

A Cultura do Linho


Gostei de ver a evocação que fez o meu amigo Eduardo Daniel Cerqueira, do blogue Paredes de Coura - Terra com Alma , à tradicional cultura do linho. Trata-se de uma amostra das tradicionais "fiada" e "espadelada" onde não faltam os cantares regionais, os namoricos, as rixas, a merenda.
Mas acerca desta ancestral actividade muita coisa se pode dizer ainda porque o ciclo do linho nunca tinha fim. E eu, recorrendo ao arquivo das minhas memórias de infância, posso deixar alguns contributos para ilustrar o quão árdua era essa tarefa
Poderia começar pela fiada mas vou começar pelo início, isto é, pela preparação da terra para efectuar a sementeira.
A terra escolhida para tal fim era da melhor, funda, bem adubada e perto de manancial de água porque é uma planta muito exigente neste recurso.
Assim, em Abril ou Maio, a terra bem estrumada era cavada ou lavrada, alisada com ancinhos e limpa de quaisquer ervas ou matéria orgânica à superfície para de seguida a mão experimentada do semeador lançar a linhaça ao solo. Seguidamente, com os mesmos ancinhos, as sementes eram devidamente misturadas com a terra fresca e fofa e ficava a germinar.
Assim que as sementes grelavam começava uma constante cata de ervas daninhas, nomeadamente a gorga, e frequentes regas com todo o cuidado para não arruinar a cultura. Eram horas, dias a fio que as mulheres passavam debruçadas sobre o linhar ou linhal, em jornadas contínuas que se desenvolviam até ao amadurecimento da baganha, lá por princípios de Agosto. Pelo meio ficava o período da floração. Lindo de se ver o espectáculo que aquelas pequenas porções de terreno, todas cobertas com um uniforme manto de verde e azul colorido, proporcionavam ao nosso olhar!
Seguidamente procedia-se ao arranque dos caules, perfeitamente acondicionados em manadas que se sobrepunham cruzadas umas sobre as outras.
Num canto do terreno era colocado o ripanço, um banco longo de madeira com uma cavidade ao centro onde encaixava verticalmente o ripo, um madeiro com um pente de ferro encastoado no topo. Era aqui que se separava, manada a manada, a baganha dos finos caules. A baganha era seca na eira ao sol para largar a linhaça, o linho, devidamente acondicionado aos molhos bem apertados com atilhos de palha de centeio, era transportado às costas e à cabeça das mulheres para o ribeiro onde ficava mergulhado na água cerca de uma semana. Escolhia-se um poço com a profundidade suficiente para os molhos ficarem submersos e, dispostos estes lado a lado, eram cobertos com ramos de árvores carregados com pesadas pedras para manter aquele tesouro nas profundezas.
Por fim era retirado da água e estendido num campo aberto e com boa exposição solar em fiadas sucessivas para secar.
Depois de bem seco, o linho era levado para a eira e ali submetido manualmente, com maça ou mangual, a uma longa e barulhenta maceração até desfazer a parte exterior ficando apenas a fibra em bruto com muitas partículas da casca, chamadas arestas, à mistura. Também era possível efectuar esta operação em engenhos próprios movidos a água mas raramente se recorria a este artifício por ser muito dispendioso devido ao transporte, em regra para bem longe, e pagamento dos honorários devidos ao proprietário.
Após ser maçado podia-se guardar a fibra para quando houvesse tempo, normalmente no fim do Outono e durante todo o Inverno.
Só depois é que se fazia a espadelada. Preparavam-se manadas de grossas fibras que à força da espadela no cortiço eram libertas do resto de matéria lenhosa. Com esta matéria também se soltavam algumas fibras mais grosseiras, os tomentos, que depois de limpos o melhor possível das arestas eram fiados e davam lugar a um tecido grosseiro com que se fabricavam lençóis, autênticos instrumentos de tortura a condizer com o tormentoso nome.
A outra parte do linho, depois de assedado no sedeiro, dava lugar a dois subprodutos: o linho, a melhor e mais fina matéria daquela fibra, e a estopa.
Seguia-se a fiada, com a roca e o respectivo fuso, passando de vez em quando o fio pela língua para ajudar a torcer:
Quem me dera ser o linho
Que vós na roca fiais,
Quem me dera dar beijinhos
Como vós no linho dais.
Assim cantavam os rapazes que apenas assistiam àquela actividade com o fito de "engatar" alguma namorada...
O fio enrolado no fuso dava lugar à maçaroca que depois de submetida a nova operação no sarilho, atando uns fios aos outros, dava lugar a uma meada.
As meadas eram cozidas com cinza, colocadas a corar, lavar e corar, lavar e corar, até atingir a alvura pretendida. Só depois ficavam prontas para serem colocadas na dobadoira, fazer novelos, os novelos iam à urdideira e dali saía a teia.
No final de todas estas operações é que a teia era acondicionada no tear para fabricar aquelas maravilhas que noutros tempos serviram para confeccionar peças de vestuário, aconchegaram muitas camas e, actualmente, guarnecem mesas, cobrem altares e são o orgulho dos enxovais de muitos lares.

sábado, 15 de novembro de 2008

Carta para Josefa, minha avó


Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.

José Saramago, in “Deste Mundo e do Outro

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O Tesouro Encantado


Estava escrito nos livros de magia mas era um segredo bem guardado. Na Fonte do Seixo existia um tesouro encantado que um Mouro muito rico ali escondera na fuga precipitada dos temíveis heróis da reconquista cristã mas só acessível a quem tivesse a intrepidez e a coragem necessárias para lá ir à meia noite, em plena lua cheia, e realizar o ritual mágico que o havia de libertar dos terríveis e medonhos monstros que o guardaram noite e dia ao longo dos séculos.
A fórmula estava bem explicada no famoso e ultra-secreto Livro de S. Cipriano de que se ouvia falar mas que ninguém conhecia. Bem, ninguém não. Um antigo e perseguido calhamaço sobrevivera e estava, havia muitos anos, secretamente escondido, no fundo de um baú, já meio carcomido da traça. Era um exemplar único que alguém preservou da sanha persecutória que perdurou mesmo depois de ser extinta a Santa Inquisição. De tal forma foi escondido que até o próprio dono lhe perdeu o rasto. Mas o tempo passou, o sigiloso fundo secreto foi devassado e o misterioso livro voltou a ver a luz do dia.
Porém o achado não podia ser divulgado. Mesmo sem Inquisição a censura era apertada e se o Padre da Freguesia ou o Cabo da Guarda suspeitasse da sua existência era certo que seria rapidamente incinerado e o seu detentor alvo de tremenda excomunhão, para não falar em castigo bem pior. Assim, a mensagem foi passando de boca em boca num círculo muito restrito de jovens aventureiros e robustos, a quem nada nem ninguém metia medo que em longos serões e longe da observação de quem quer que fosse iam desfolhando curiosamente todas as páginas do famoso alfarrábio.
A ideia começou então a ganhar forma: - Vamos à Fonte do Seixo desencantar o pote de libras de ouro que lá está nas profundezas e ficamos ricos!
Já nada os podia deter. Sonhavam com dinheiro a rodos, libras reluzentes a encher os bolsos, comprar cavalos e terras, boas farpelas, boa e abundante comida na mesa, o mundo a seus pés...
Estudaram a fórmula até à exaustão, muniram-se de calendários e almanaques com as fases da lua, rebuscaram velas de cera por todos os cantos dos respectivos lares e até umas quantas galinhas negras desapareceram misteriosamente das capoeiras deixando estupefactas as respectivas donas. Nem o gato preto da Ti Ana da Pinta escapou. A operação ganhava corpo no mais absoluto e intrigante sigilo.
Chegou finalmente o dia que os deixaria ricos. Quase nem cearam e para não levantar suspeitas simularam ir deitar-se. No silêncio da noite, quando todo o mundo dormia placidamente, algo se movia na pequena aldeia. Eram cinco corajosos e desenvoltos jovens que se deslocavam sem fazerem o menor ruído pelos sombrios caminhos que conduziam ao cimo da povoação, para se reunirem num local pré-determinado, cada qual transportando os materiais necessários para a arriscada missão. A lua, redonda e enorme, iluminava perfeitamente a serra e os caminhos que conduziam ao local de destino. Logo que o grupo se reuniu nem foi preciso falar nada. Um simples olhar, como que a confirmar se estava tudo a postos, foi a senha necessária para darem início à caminhada.
Os caminhos eram bem conhecidos. Subiram a encosta do Carril até ao planalto de Chão da Aveleira, mais uma íngreme subida até Fonte Boa, depois um pouco mais suave até por cima da poça do Arroio. Ali começava o estreito vale da Fonte do Seixo, sinistramente escuro e medonho.
A água que escorria pelo estreito córrego, rumorejante, de pedra em pedra, por entre a vegetação rasteira, parecia querer dizer-lhes que desistissem. Os cabelos eriçavam-se e calafrios de medo percorriam as espinhas dos arrojados jovens mas nada os demovia do objectivo definido. Com o ânimo cada vez mais vacilante procuravam não demonstrar os sentimentos de insegurança e davam vigorosas passadas por entre as ramagens de giestas, urze e tojo. Era preciso atingir a nascente que ficava umas centenas de metros mais acima, abrigada por uns penhascos rochosos e densa vegetação selvagem.
Chegaram finalmente à clareira de relva verde e fresca que bordejava o generoso manancial. Conheciam bem a serra e a nascente onde se dessedentaram vezes sem conta, uma água cristalina e fresca com não havia igual. Até se dizia que detinha propriedades medicinais por causa do ouro que estava depositado nas entranhas da terra donde brotava e já várias pessoas tinham obtido a cura para as suas moléstias mas a noite e as sombras formadas pela luz pálida do luar tornavam o lugar mais sinistro do que alguma vez imaginaram.
Não havia tempo a perder. Sabiam bem o que era preciso fazer e o tempo urgia porque já passava das onze e à meia-noite em ponto tinha que se dar início ao ritual. Pousaram os provimentos que carregavam às costas transpiradas, quer pela carga, quer pela extensa caminhada, sempre a subir, quer ainda pela emoção e, porque não, por um mal disfarçado medo. Começaram então a preparar o cenário tal como tinham lido no livro e delineado vezes sem conta.
Desenharam um pentagrama, a famosa estrela de cinco pontas de que tanto tinham ouvido falar mas cujos poderes ignoravam, tendo o cuidado de orientar o vértice por forma a coincidir em simultâneo, à meia noite em ponto, com a posição da lua e da nascente de água. No meio do pentagrama construíram toscamente uma espécie de altar onde foram depostas em círculo, depois de degoladas, as cinco galinhas pretas que tinham desaparecido misteriosamente mas que ali reapareceram prontas a serem sacrificadas às forças ocultas que guardavam o cobiçado tesouro. No meio do círculo formado pelas carcaças ensanguentadas das galinhas foi colocado o gato preto da Ti Ana que, por causa do seu mau feitio, já tinha sido sacrificado no dia anterior. À volta do enigmático altar foram acesas as cinco velas que completavam o quadro.
Ficava assim concluído o cenário onde decorreria a função que lhes havia de trazer a almejada fortuna.
Quem presenciasse aquele quadro não ficava com a mais pequena dúvida de que só poderia ser obra do demónio.
O passo seguinte era também bem conhecido dos membros do grupo. Cada um ocuparia a respectiva posição, de joelhos e sentado nos calcanhares, em cada um dos cinco vértices do pentagrama, de forma que ficassem voltados para o local de onde manava o precioso líquido.
Conforme rezava a lenda, seria ali que se abririam as portas por onde jorraria ouro em abundância tal que nunca mais precisariam trabalhar como mouros no cultivo das terras e na pastorícia. Sabiam também que antes se confrontariam com terríveis monstros que haviam de surgir das profundezas para os atemorizar e perante os quais não poderiam de modo algum vacilar sob pena de se quebrar a magia que havia de desfazer o encantamento.
Com tudo a postos e já nas respectivas posições, os jovens não viam a hora de começar o ritual. Não falavam, não se ouvia qualquer ruído. Apenas um abafado rumorejar da água da nascente e um surdo matraquear dos músculos cardíacos que batiam nos peitos a um ritmo desconcertante.
Era um quadro deveras estranho e macabro o que se desenhava na pacata clareira com os cinco vultos geometricamente dispostos no amplo pentagrama iluminados pelas trémulas luzes das cinco velas e pelo pálido brilho de uma refulgente lua cheia.
Finalmente ia iniciar-se a função. O líder do grupo, que ocupava o vértice apontado à fonte, retirou um velhíssimo alfarrábio de um saco de serapilheira que até ali se mantivera intocável em cima da relva e abriu-o na página previamente marcada. Começou então um ininteligível recital, misto de orações e imprecações, através do qual os temerários jovens evocavam trémula e repetidamente as forças do mal e instavam os demónios para que libertassem o desejado tesouro mas em vão.
Mesmo assim não esmoreceram. Repetiram os satânicos rituais duas, três, cinco vezes. Por fim pareceu-lhes pressentir o solo a tremer sob os seus joelhos. Uma negra nuvem ofuscou o luar e uma rajada de vento apagou os frouxos luzeiros das velas. Do cimo do penedo que ficava sobranceiro à fonte elevou-se majestosamente um gigantesco pássaro, lançando no ar um lancinante grito que ecoou por montes e vales, desaparecendo célere nas imensas trevas.
Foi o suficiente para fazer soçobrar a ténue réstia de coragem que ainda retinha ali o fatigado grupo. Instintivamente puseram-se em pé e desataram numa arrebatada corrida pela serra abaixo, cada qual por onde podia e o instinto o orientava, a qual só terminou pouco mais de meia hora depois na localidade de onde tinham partido, secretamente, algumas horas antes.
No dia seguinte, uma súbita e estranha doença reteve no leito quatro dos cinco jovens, ninguém sabia que moléstia os acometera mas parecia coisa má a avaliar pelo aspecto que apresentavam. Do quinto não havia notícia mas poderia ter saído de casa cedo sem dizer nada à família, já não era a primeira vez.
No final do dia um pastor relatou a descoberta de um estranho e macabro espólio junto da Fonte do Seixo mas não se atreveu a mexer no que quer que fosse. Nunca tantos e tão intrigantes casos se tinham verificado na pacata aldeia. Até parecia coisa de bruxas. Depois de falarem com o Padre Bernardino houve quem sugerisse que se denunciassem os factos às autoridades.
***
O Cabo da Guarda registou a ocorrência e decidiu assumir ele próprio a direcção das investigações. Era uma missão bem espinhosa porque a distância até ao local do estranho achado era considerável, sempre a subir, e tinha de ser percorrida a pé. Mas isso não era obstáculo que o demovesse de cumprir com o seu dever. Já tinha passado por situações bem piores quando efectuava o giro da montanha, chovesse ou fizesse sol, numa missão que, geralmente, demorava três dias. No dia seguinte, manhã cedo, subiria à serra para iniciar as diligências que se impunham.
Eram cinco da madrugada quando o diligente polícia saiu do Posto acompanhado por um ordenança.
Quando o sol despontou lá por detrás da Cumeeira já estavam à porta da taberna do Ti Albino, em Quartas, à espera que este se levantasse para lhes fornecer o mata-bicho com que tencionavam retemperar as forças.
O veterano taberneiro era um velho almocreve que conhecia a serra como as palmas da mão, tantas foram as vezes que a atravessou com as suas mulas carregadas dos mais diversos géneros, especialmente de vinho que transportava em odres, uns sacos feitos de pele de cabra devidamente curada a preparada para o efeito. Era também um velho conhecido das autoridades policiais a quem fornecia frequentemente informações preciosas acerca do que via e ouvia. E nada melhor do que uns bons copos de vinho verde ou aguardente bagaceira de fabrico artesanal para que os assíduos frequentadores da tasca “cantassem” como rouxinóis.
Por isso era quase obrigatório as patrulhas da Guarda pararem naquele local para revigorar as forças e para “dois dedos” de conversa sempre muito útil e profícua. E enquanto mastigavam uns pedaços de broa, “empurrada” com pequenos goles de aguardente, a conversa ia fluindo. Foi assim que o taberneiro ficou a saber do objectivo da visita das autoridades e estas das secretas conversas de um restrito grupo de rapazes que havia algum tempo tinham despertado a curiosidade do anfitrião. Só que quando este se aproximava discretamente para tentar captar algo desviavam a conversa para as banalidades do costume ou dispersavam para as respectivas casas. Era de facto muito intrigante. Ali havia coisa, pela certa...
Com o estômago aconchegado pelo frugal pequeno-almoço, a patrulha atacou a serra com todas as ganas. Já passava das onze quando chegaram ao local que lhes fora mencionado e o comandante concluiu de imediato, pelos vestígios existentes, que ali se tinha desenvolvido um ritual de magia negra. Só não sabia a razão da escolha daquele local. Esses acontecimentos ocorriam, geralmente, junto ou mesmo no interior de cemitérios, em encruzilhadas de caminhos rurais e até no interior das localidades. Também não sabia como relacionar o evento com o suspeito grupo de que lhe falara o taberneiro. Conhecia os rapazes, eram jovens, de boas famílias embora humildes, um pouco rebeldes como todos os jovens mas nunca lhe constara que estivessem associados a essas condutas anticristãs..., o Ti Albino estava a ficar um pouco caquéctico, coitado, já tinha reparado que as suas informações não eram tão fiáveis como noutros tempos.
Ainda era visível o desenho da estrela de cinco pontas, as pedras que serviram de altar permaneciam no centro, junto delas os cotos das velas semi-queimadas. Eram também visíveis as pretas penas e pequenos ossos dos galináceos devorados pelas feras e um pouco mais longe o cadáver de um gato preto começava a entrar em decomposição.
O Cabo da Guarda limpou o suor que lhe escorria do rosto e olhou o sol escaldante que atingia o zénite. Não disfarçava algum nervosismo com todo aquele aparato mas procurou manter a calma e até teceu algumas considerações supostamente cómicas acerca do achado. Estava calor mas não era apenas o sol de Verão que lhe produzia aquele efeito. Sentia-se sufocar dentro da grossa e incómoda farda de cotim cinzento, guarnecida de brilhantes botões de metal amarelo e apertada até ao pescoço. Bem lhe apetecia libertar-se daquele peso brutal mas não lhe era permitido pelos regulamentos e sabia que se o fizesse podia cair-lhe em cima a mão pesada da hierarquia guiada pelo famigerado Regulamento de Disciplina Militar, o célebre RDM que nos quase sessenta itens do artigo quarto definia tudo que lhes era imposto e proibido, desde a obediência cega e incondicional ao chefe até às mais íntimas relações de carácter pessoal e privado.
Bebeu um pouco de água e refrescou as mãos. Já tinha tomado nota de tudo e voltando a colocar a pesada mauser à bandoleira e sempre seguido pelo ordenança rumaram encosta abaixo até Cavenca. O seu instinto dizia-lhe que era ali que estava a chave de todo aquele mistério mas havia outra razão muito ponderosa para se dirigirem ao povoado. De facto, o esforço dispendido e aqueles ares da serra tinham dado lugar a uma lazeira que qualquer coisa que se mastigasse era bem-vinda. E daquele lugar nunca saíram de estômago vazio. Era gente extremamente generosa e o pouco que tivessem dava sempre para partilhar.
***
Foram direitinhos à Casa do Santo, junto da capela da aldeia, a residência do Padre Bernardino, um refugiado Galego acolhido com extremo carinho por aquela gente. E não era caso para menos. Além de velar espiritualmente pelo seu rebanho, o Padre desenvolveu uma obra social de relevo, criando uma escola e chegando a formar e dirigir uma banda de música que ficou célebre em toda a região. Quando abriu a porta e deparou com o ar cansado da patrulha adivinhou logo o objectivo da visita. Sem a menor cerimónia os homens da lei entraram, pousaram as armas e as mochilas e sentaram-se à mesa onde havia sempre um pedaço de broa e uma caneca com vinho azedo, autênticos manjares de deuses de que se serviram regalados enquanto o Padre espevitava o lume para aquecer a sopa.
Entretanto actualizavam-se as informações. O Zé da Bina andava desaparecido havia dois dias. Ninguém sabia dele. Na semana anterior tinham desaparecido cinco galinhas de diversos galinheiros, por sinal todas pretas, e também tinha desaparecido o gato preto da Ana da Pinta, disse o Padre benzendo-se. E quatro rapazes fortes e espadaúdos tinham amanhecido doentes, com febre e todos arranhados nas mãos e no rosto, parecia obra do mafarrico.
O comandante e o seu ordenança ouviam tudo atentamente mas a atenção deles estava mais centrada no negro pote de ferro que ao lado do lume já resfolegava como uma locomotiva. Sem delongas, o Padre encheu duas enormes tigelas de barro vidrado e colocou-as à frente dos visitantes que prontamente atacaram aquele fumegante, espesso e nutritivo caldo de couves com feijões e farinha de milho.
Agora que o estômago já não clamava por sustento e mais descansados da longa caminhada já havia melhores condições para pensar. As coisas começavam a encaixar: as conversas na taberna, os despojos das galinhas e do gato lá na serra, os misteriosos desaparecimentos em Cavenca e a súbita maleita que acometera os jovens constituíam as peças de um puzzle em formação. Mas havia ainda brechas por preencher e questões que requeriam uma solução. O Zé da Bina, que havia dois dias ninguém via, onde se encaixaria naquele enigma? E que motivos levariam o grupo àqueles confins da serra para realizar um ritual demoníaco, cuja experiência indicava que era quase sempre relacionado com bruxas e frustradas questões amorosas?
Só havia uma forma de saber. Era interrogar os presumíveis protagonistas. Nesse sentido, despediram-se cordialmente do Reverendo e percorreram a principal rua da localidade, um estreito caminho de calçada portuguesa com uns profundos sulcos laterais provocados pelas inúmeras passagens das ferragens que circundavam as grossas rodas dos carros de bois.
Pararam no Largo da Fonte, em frente a um esburacado portão de madeira centenária, atado à ombreira com um arame ferrugento. No quinteiro interior um rafeiro começou a latir e o proprietário apareceu à porta da casa para se inteirar do que se passava. Cumprimentou respeitosamente retirando a desgastada boina basca da cabeça deixando a descoberto umas desgrenhadas repas de cabelo ralo e grisalho. Era um homem de estatura mediana, magro, precocemente envelhecido e profundamente marcado pelo rude trabalho do campo. Exprimiu como pôde a sua preocupação pelo estado do filho que ainda não saíra da cama e não falava nem se alimentava. Tremia como se estivesse num estado febril mas não havia indícios de temperatura elevada e parecia um Cristo, tal a quantidade de golpes e escoriações pelo corpo, principalmente nas pernas, nas mãos e no rosto. Mas o melhor era os senhores guardas entrarem para ver com os próprios olhos...
Ordenou ao cão que se afastasse e dirigiu-se para a habitação seguido pelos agentes da lei. Subiram uns degraus, toscos, de granito, o mesmo material que revestia a calçada e que servia para erigir as paredes das casas, atravessaram um pequeno alpendre onde permaneciam na mais completa desordem umas quantas alfaias e ferramentas agrícolas e penetraram na principal divisão que servia de sala de visitas, de sala de jantar e para desenvolver as mais diversas actividades domésticas: fiar, espadelar, esquartejar o porco, debulhar o milho, secar feijão e castanhas...
No canto da direita, ao fundo, ficava a cozinha, umas toscas lajes de granito assentes em grossas traves de carvalho, que se situavam num desnível inferior com cerca de quarenta centímetros em relação ao soalho do resto da casa o qual, por essa razão, também servia de banco. De um lado o forno de lenha para cozer a broa e, em ocasiões especiais, assar o saboroso cabrito ou borrego serrano e as respectivas ferramentas: a pá, a férrea, a vassoura e o rascanheiro. Do outro lado um antigo escano que já servira de local de repouso e de mesa para tomar as refeições aos patriarcas de várias gerações. Ao centro, encostado á parede, um poial de granito sobre o qual se amontoavam as negras panelas de ferro fundido e as rústicas loiças de barro que já fora vidrado usadas no dia a dia e à frente deste o trasfogueiro, também de granito, onde se encostava a lenha da lareira para melhor arder. Por detrás do escano um tosco armário para guardar os parcos géneros de uso quotidiano. Um simples e robusto bufete de castanho com dois bancos corridos, um de cada lado, e uma masseira constituíam o resto do mobiliário.
À esquerda havia uma divisória em madeira cuja origem era impossível de adivinhar porque se apresentava totalmente negra, não pela qualidade do material mas pela acção constante do fumo, aliás, igual a todo o espaço envolvente. Duas portas meio desengonçadas indiciavam a passagem para os aposentos mais reservados onde o agregado familiar dormia. Foi para um desses cubículos que se dirigiu o anfitrião, seguido dos diligentes guardas.
O Zé da Fonte, assim se chamava o proprietário da casa, entrou à frente seguido dos visitantes. O espaço era exíguo, mal iluminado e exalava um cheiro nauseabundo, parecido com o odor da corte onde dormiam os porcos. Encostada à parece de granito havia uma cama de ferro na qual se divisava, sob as grosseiras mantas de lá e farrapos, um encolhido vulto de gente. Umas peças de roupa pendiam de um dos ferros dos pés da cama e por baixo da mesma viam-se umas botas rotas e sujas de barro.
- Tónio, os senhores guardas querem falar contigo – chamou o pai.
Mas o Tónio não se moveu.
O pai voltou-se para o Cabo da Guarda, que entretanto se tinha sentado num baú no outro extremo do quarto a rabiscar no seu bloco de apontamentos, e encolheu os ombros. Este levantou-se e dirigiu-se à cama:
- Vá lá, rapaz, nós já sabemos tudo mas preciso que me expliques algumas coisas, não tenhas receio que nada te vai acontecer...
Fosse pelo tom imperativo do Guarda, fosse pelo facto de saber que o segredo tinha sido desvendado, fosse ainda pela necessidade de falar com alguém do que se tinha passado, a verdade é que o rapaz voltou-se vagarosa e dolorosamente na cama, abriu os olhos e enfrentou os seus interlocutores. O seu rosto exprimia bem o medo porque tinha passado e as dores que o atormentavam. Estava pálido como a cal, profundas olheiras circundavam as órbitas oculares e algumas crostas de sangue salpicavam-lhe a face, o nariz, a testa e o pescoço. Sem lhe perguntarem mais nada começou a falar com a voz ainda trémula de medo:
- Eu não sei de nada. Nós só queríamos o ouro mas ELE saltou lá do alto dos penedos, veio para cima de nós e tivemos de fugir. Não me lembro de mais nada. Não sei por onde andei nem como vim parar aqui...
- ELE quem? - Perguntou o comandante.
- Só podia ser o diabo, parecia um morcego gigante. Tinha uma garras enormes e olhos como brasas... eu nem o vi bem...
- E o Zé da Bina também estava convosco?
- Ele é que tinha o livro, foi ele que nos convenceu a ir desencantar o tesouro.
- E também fugiu com vocês?
- Acho que fugimos todos... não sei, não vi mais ninguém, como disse não me lembro de mais nada.
- E o livro? De quem era? Onde está agora?
- Era um livro muito velho que o Zé encontrou na casa da Tia Rosa da Eira Velha. Se não ficou no monte deve tê-lo ele...
- Está bem, por agora não preciso saber mais nada... anda, vai lavar essa cara e comer alguma coisa que bem precisas.
Terminou assim o interrogatório, que se repetiu em mais três casas, sempre com o mesmo resultado. Estava praticamente esclarecido o mistério, com certo alívio do comandante da Guarda mas faltava esclarecer uma dúvida, talvez a parte mais importante: Onde parava o Zé da Bina?
Havia apenas uma certeza. Tinha participado activamente na aventura e fora ele a descobrir o livro maldito cujo paradeiro fora, até ali, uma incógnita. Há coisas do diabo, dizia-se, e aquele caso era o tema do momento na pequena aldeia serrana, onde havia uma inquestionável crença nos poderes sobrenaturais das bruxas e dos santos e uma inabalável fé em Deus e no Diabo. Por isso começava a ganhar forma a ideia de que naquele momento já se encontraria a arder os horrores infernais arrebatado da Terra pelas poderosas garras de Satanás transformado em morcego descomunal e de nada serviria procurá-lo por onde quer que fosse.
Só que o Cabo da Guarda não era homem de se acomodar a uma explicação tão simplista e desprovida de fundamentos plausíveis. Por isso decidiu pernoitar na aldeia para continuar as diligências no dia seguinte, que na ânsia de ver esclarecido o intrincado caso nem deu pelo tempo a passar e era já noite cerrada.
Era costume aboletarem-se em casa do João Sapateiro, no sítio do Regueiro, e foi para lá que se dirigiram.
A dona da casa, que durante o dia se esfalfava nas lides do campo e em casa superintendia em tudo, já providenciara uma frugal refeição, com recurso aos produtos da casa, que naquele tempo não havia equipamentos de frio e era tudo conservado por métodos ancestrais ou consumido fresco, da horta ou da capoeira. Umas simples batatas e couves cozidas com um pedaço de lacão, uma espécie de presunto feito com o pernil e a pá do porco, com a sua licença, como era usual dizer-se, fizeram as delícias da família e dos hóspedes. Remataram a ceia com uma sopa de leite que, como o nome indica, não era mais do que uma mistura de água, leite e farinha de milho para engrossar.
Ainda permaneceram um pouco à mesa, sob a pálida luz de uma candeia a petróleo, a conversar do tema da actualidade, como não podia deixar de ser, mas, cansados, cedo se retiraram para os aposentos já de todos conhecidos.
Sabia bem repousar, despojado da incómoda farpela, naqueles simples catres guarnecidos com uns almadraques cheios de palha de centeio. Apesar do desgaste de muitas noites de uso, as roupas fabricadas artesanalmente nos teares domésticos exalavam um cheiro fresco e agradável e rapidamente se afundaram num sono profundo e regenerador.
***
Naquelas casas não havia necessidade de usar despertador. A luz solar comandava tudo e bem cedo a luz do dia penetrou nos aposentos dos guardas por inúmeras frinchas e buracos no tecto de telha vã.
Era perfeitamente audível a azáfama na casa dos anfitriões. O cantar matinal do galo, que como um clarim da tropa comandava tudo, marcava a hora de levantar. Toda a gente tinha tarefas definidas: alimentar e ordenhar as vacas, alimentar os vitelos, porcos, galinhas e coelhos, abrir o curral das cabras e ovelhas para juntar o rebanho à vezeira que de madrugada demandava o monte para se alimentar. Só depois é que se reuniam na cozinha para tomar a primeira refeição do dia, o pequeno almoço, que ali se designava almoço, quase sempre constituído por uma sopa da véspera requentada ou uma escaldante e gorda água de unto feita na hora.
Para os ilustres hóspedes a dona Delmira tinha preparado algo mais caprichado, uma mistura de café preparado num púcaro de barro escuro como breu, ao qual não faltou a adição de uma incandescente brasa para assentar, e um fervedor de leite inteiríssimo acabado de sair do úbere da generosa Pisca, tudo acompanhado com a imprescindível broa de milho.
Mal acabara de colocar os recipientes em cima do bufete guarnecido com uma alva toalha de linho que já atravessara várias gerações apareceram, garbosos, os senhores guardas. Pareciam outros, perfeitamente escanhoados, as botas, as polainas, os botões e fivelas a brilhar, a farda sem um grão de poeira. Até parecia que iam desfilar numa daquelas imponentes paradas de que se ouvia falar. Mas não, era um ritual que lhes fora incutido desde que envergaram a farda da tropa, que se manteve e reforçou na Guarda e que assumiam de forma espontânea onde quer que se encontrassem, numa clara manifestação de brio e de profissionalismo exemplares.
- Pois é, senhor João, estive a pensar e acho que é melhor efectuar uma busca pela serra à procura do rapaz - disse o comandante dirigindo-se ao seu anfitrião – algo me diz que ficou por lá...
- Como vocemessê quiser, se for preciso toca-se o sino que depressa se junta gente para varrer a serra num instante... mas cá para mim ele não vai aparecer nunca... Aquilo é obra do diabo! Para o que lhes havia de dar...
Dali a instantes uma pequena multidão de voluntários de todas as idades, homens e mulheres, demandava a serra em busca do desaparecido.
Organizaram-se de forma a não deixar beco, ravina, barroca ou cortelho por revistar. Todas as possibilidades de percurso, de Cavenca até à Fonte do Seixo, foram minuciosamente exploradas. Alguns mais curiosos ainda se aproximaram da clareira onde decorrera o fatídico evento mas ao ver o que restava do estranho ritual persignavam-se e afastavam-se lestos. No final, nada. Nem rasto do Zé da Bina.
Já a tarde ia a meio quando o Cabo da Guarda e o seu ordenança abandonaram Cavenca. Era um ponto final numa investigação que até tinha sido muito profícua mas o resultado não permitia considerar o caso encerrado. Era apenas uma pausa para fazer os relatórios que se impunham e aguardar pelos desenvolvimentos futuros.
***
Os dias passavam lentamente e a vida na pequena aldeia ia retomando o ritmo normal.
Uma semana depois da Guarda dar o caso por encerrado o Amadeu foi segar feno para um campo lá na serra, do outro lado da Corga da Calhe, que forma a divisória entre as freguesias de Riba de Mouro e da Gave e, consequentemente, dos concelhos de Monção e de Melgaço.
Interrompeu a azáfama a meio da manhã para uma ligeira refeição, que o corpo não tem raízes na terra. Enquanto mastigava lentamente um pedaço de pão com chouriço a sua atenção concentrou-se num ruidoso movimento de pássaros, pouco usual, junto a uma mole rochosa conhecida pela Torre dos Ferreiros, na encosta do lado fronteiro àquele onde se encontrava.
Era um bando de aves negras, pareciam corvos, que grasnavam agitadas em torno de um ponto definido ao fundo do precipício.
Conhecia bem os hábitos daquelas agourentas aves que só agiam assim em circunstâncias muito peculiares, quer fosse em torno de uma águia, sua inimiga habitual, quer fosse em torno de alguma preia em putrefacção.
Águia não era, de certeza. As lutas com estas majestosas aves desenrolavam-se sempre nos céus e os malditos corvos quase sempre obrigavam a rainha dos ares a debandar, não por serem mais poderosos mas porque são muito mais ágeis e atacam sempre em bando. Por exclusão de partes só podia ser animal morto, já não era a primeira vez que acontecia andarem as vacas a pastar lá no alto e despenharem-se no abismo, de que resultava certa a morte. Ainda se lembrou do Zé da Bina mas... podia lá ser... Nunca poderia ir ali parar e sofrer um acidente daquela natureza. É certo que a Fonte do Seixo não fica assim tão longe mas entre os dois locais ainda se intromete uma cumeada de respeito, coberta de mato... Não, não podia ser...
Recomeçou o trabalho mas a persistência das aves naquela algazarra infernal e a ideia que lhe continuava a latejar no cérebro não lhe permitiam concentrar-se no que estava a fazer. Tinha que ir lá ver o que se passava, não ficava descansado se não o fizesse.
Neste propósito meteu-se a caminho. Ainda era longe porque tinha de contornar a medonha Cabeça da Fraga. E para isso tinha de subir a encosta até ao caminho que levava da Gave à Branda da Aveleira, contornar a serra lá pelo cimo do imenso cabeço e descer depois pela cumeada entre a Corga da Calhe e a Corga do Arroio. Depois tinha que inflectir para a direita e ir até ao alto da Torre dos Ferreiros ver se lá de cima conseguia descortinar a causa da frenética actividade dos pássaros.
Não foi tarefa fácil. O tojo, os enormes piornos, as giestas, as urzes e outra vegetação rasteira, mau grado a existência de alguns estreitos carreiros, constituíam um obstáculo que crescia de dificuldade à medida que se aproximava do perigoso promontório. E era preciso também redobrar o cuidado porque um passo em falso poderia originar a queda no abismo onde certamente morreria, se não da queda, pela falta de ajuda para dali sair. Neste sentido o bando das agoirentas aves tornou-se um precioso auxiliar. Já ouvia a sua algazarra e até viu algumas a esvoaçarem por cima da sua cabeça. Estava quase lá. De repente aparece uma rocha mais elevada que sabia ser o ponto mais alto da Torre. Para lá dessa rocha só se vislumbrava o infinito.
Aproximou-se agarrado aos arbustos e por fim começou a escalar o pardo rochedo. Agora era fácil. Completamente colado à massa granítica arrastou-se até à borda do precipício. Algumas pequenas pedras soltas resvalaram e despenharam-se nas profundezas espantando a passarada que se empoleirava nas saliências graníticas e só passados longos segundos ouviu o baque surdo das mesmas a embater no solo.
A paisagem que agora se abria perante os seus olhos era pavorosa. À direita ficava a Corga da Calhe, recortada quase a prumo, que prosseguia pelo estreitíssimo vale abaixo através de um desfiladeiro que parecia interminável. À esquerda a serra começava a suavizar os seu contornos até se esbater no planalto do Arroio. Em frente era o abismo...
A custo conseguiu espreitar para as profundezas mas à primeira tentativa não viu nada de anormal. Voltou a olhar de novo sem resultado. Mas de repente, dois ousados corvos pousaram num pequeno arbusto bem lá no sopé do rochedo. De seguida um deles saltou para cima duma espécie de pedregulho escuro sobre o qual ferrou umas frenéticas bicadas voltando a elevar-se nos ares desconfiado. Só então conseguiu vislumbrar uma forma parecida com um corpo humano. A altitude ou o estranho achado causaram-lhe vómitos e sentiu o ritmo cardíaco a aumentar assustadoramente. Tinha de agir ligeiro.
O grande problema eram as comunicações. Porém isso não era dificuldade que não fosse ultrapasssada por aquela gente que, habituada a viver isolada na montanha, desde sempre arranjou formas de comunicar e o Amadeu não se ficou de braços cruzados. Gritou com todas as forças até que alguém lhe respondeu dos lados do Coto da Aradeira, dali a mensagem voou até à Corte da Mílhara e depressa chegou a Cavenca: O Amadeu tinha descoberto um corpo no sopé da Torre dos Ferreiros e era preciso avisar a Guarda rapidamente.
Um mensageiro abandonou o lugar a toda a brida. Depressa desapareceu para lá dos Valados, atravessou o monte da Pegada, desceu até Quartas, sem se deter alcançou o lugar da Portela e só parou no estabelecimento comercial do senhor Regedor, que também servia de posto de correios e era o único sítio onde se encontrava um primitivo telefone.
***
Na sua residência oficial, o Cabo da Guarda tinha acabado de almoçar, a segunda refeição do dia que então se designava jantar e cochilava pachorrentamente à mesa quando alguém bateu à porta com vigor. Algo contrariado acorreu à porta para saber do que se tratava. Era o Plantão que tinha acabado de receber um telefonema do regedor de Riba de Mouro. Na serra, por cima de Cavenca, aparecera o cadáver de um homem, supostamente o jovem que tinha desaparecido misteriosamente uma semana atrás.
Estava um calor dos diabos mas não havia tempo a perder. Ataviou-se num instante e desceu as escadas para o seu gabinete, no rés do chão da moradia que também servia de Posto. Tentou contactar a autoridade judiciária mas ninguém atendeu do Tribunal. Àquela hora era certo que estava fechado para almoço. Mas não podia perder tempo sob pena de ter de pernoitar na serra até ao dia seguinte. Deixou instruções claras para que lgogo que fosse possível fosse informado o Delegado do Ministério Público do sucedido e acompanhado de um soldado que estava no Posto à ordem pôs-se em marcha com destino à maldita Fraga.
A jornada era longa e dura. Sabia-o por experiência própria. E tiveram sorte. Mal tinham iniciado a caminhada apanharam uma boleia numa camioneta de mercadorias que os transportou até à Igreja de Riba de Mouro, mas dali não passava. A estrada ficava mesmo por ali. Tiveram de meter os pés a caminho o que não era tarefa fácil.
Entretanto o Amadeu, conhecedor das enormes dificuldades de acesso à Torre dos Ferreiros, não ficou parado. Sabia que o esperava uma longa jornada e, fazendo alarde de toda a sua perícia para se deslocar naquelas condições, conseguiu contornar o penhasco e, protegendo o irreconhecível corpo com uns arbustos, foi esperar as autoridades para um local mais conhecido.
Eram quase cinco horas da tarde quando os agentes da autoridade chegaram, extenuados, ao Arroio onde o Amadeu os esperava. Seguiram por um estreito carreiro por cima dos campos de feno, atravessaram a encosta do Outeiro Lagarto até próximo da Corga da Calhe, depois uma escalada a corta mato até ao sopé do rochedo onde se encontrava o cadáver e mais algumas pessoas, entre os quais o pai do Zé da Bina, que se aprestaram para ir reconhecer o morto e ajudar à sua remoção a fim de lhe propiciar um enterrado digno e cristão.
Foi o mesmo Amadeu, homem de compleição robusta e experimentado nos horrores da guerra civil de Espanha, que retirou os arbustos de cima do defunto. Não era um cenário fácil de presenciar. Exalava um cheiro fétido e um enxame de moscas pairava sobre o finado. Não fosse o adiantado estado de decomposição e até parecia que tinha ali ficado a dormir. Estava de bruços sobre um fofo tapete de ervas, musgo e outra matéria orgânica que cobria o solo rochoso, a cabeça um pouco de lado sobre o braço esquerdo e com o braço direito debaixo do tronco segurando ainda, como uma tenaz, um livro velho e roto. Os malditos corvos já tinham profanado o cadáver nas zonas expostas mas em tudo o resto estava intacto, sem sinais de fracturas, nem de escoriações, nem de golpes, nem sujidade nas roupas ou no calçado.
Não havia dúvidas que se tratava mesmo do jovem desaparecido na fatídica noite mas o que parecia ter sido um acidente na fuga desesperada assumia agora contornos de grande mistério.
A grande dificuldade é que o dia aproximava-se do seu fim e o local não era propício para ali estabelecer arraiais. A agravar a situação chegou a notícia, através de um estafado mensageiro, que as autoridades sanitárias e judiciais só podiam deslocar-se no dia seguinte e apenas a Cavenca pelo que o Cabo da Guarda devia promover a remoção do cadáver para o povoado com todas as cautelas para não prejudicar os exames forenses.
Era o mal menor. Pelo menos não iam ter de pernoitar naquele lugar já de si medonho, tanto mais na companhia de um morto em circunstâncias que pareciam ser obra do demónio e não faltou quem voluntariamente se oferecesse para efectuar o transporte. Com apropriados paus e lençóis que alguns familiares providencialmente tinham levado, foi o corpo carregado com todo o cuidado para uma improvisada maca e dali para a capela de Cavenca, que não havia local mais apropriado para colocar o defunto.
No dia seguinte chegaram umas pessoas importantes. Foram recebidas pelo Cabo da Guarda que mais uma vez fora obrigado a aboletar-se em casa do João Sapateiro e de imediato dirigiram-se à Capela. Havia alguns curiosos no exterior mas lá dentro ninguém foi capaz de permanecer por causa do pestilento odor. Também tal não fora permitido pelo zeloso agente da lei porque era forçoso garantir a inviolabilidade do putrefacto canastro do Zé da Bina.
Enquanto o Delegado do Ministério Público tomava apontamentos o médico legista deu início às operações para analisar pormenorizadamente o cadáver. Com a ajuda do seu auxiliar começou a recortar as diversas peças de vestuário perfeitamente intactas e, para espanto de todos, não encontrou sequelas que indiciassem causas prováveis da morte. Apenas ao voltar o cadáver para examinar a região dorsal do finado se tornaram visíveis cinco perfurações profundas, uma à direita e as outras quatro ao longo da grelha costal à esquerda, como se uma imensa mão, munida de longas e aceradas garras, o tivesse agarrado e arrebatado pelos ares, depositando-o no misterioso e recôndito local onde foi encontrado.
O caso foi encerrado ali mesmo. Do relatório da autópsia ficou a constar que o óbito ocorreu por causas desconhecidas.
O livro foi arrestado pelas autoridades e, ao que consta, o tesouro ainda hoje permanece nas profundezas da Fonte do Seixo à espera que alguém consiga quebrar o encantamento e resgatá-lo da maldição com que o discípulo de Mafoma o protegeu.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O Último Olhar


Estava sentado no lugar do condutor, numa posição perfeitamente correcta, as mãos sobre as coxas e a cabeça um pouco inclinada para trás. Se não fosse a cadavérica lividez do rosto e os olhos abertos dir-se-ia que estava a dormir. Mas não. Estava morto.
No banco ao lado estava um saco de papel vazio e sobre o abdómen uma pistola da calibre 7,65. Uma perfuração na têmpora do lado direito e o sangue que jorrara abundantemente da ferida denunciavam a forma como terminara a vida daquele jovem, no meio de um pinhal algures na serra entre Fundões e Souto de Escarão. Ninguém o conhecia.
O alerta, proveniente da Balsa, foi dado ao princípio da tarde e revelava apenas que havia um carro com um homem morto no interior.
Os procedimentos eram sempre idênticos: avisar o Delegado de Saúde e o Delegado do Ministério Público e dirigirmo-nos para o local da ocorrência.
O percurso demorava cerca de quarenta e cinco minutos, primeiro pela Estrada Nacional 212 até ao Pópulo, depois até à Balsa, no limite com o concelho de Sabrosa, pela Estrada Nacional 15. Eram cerca de vinte e dois quilómetros com muitas curvas e contra-curvas, numa viatura com pouca aptidão para aquelas vias mas que se revelava extremamente útil em todo-o-terreno quando era preciso aceder a lugares mais inóspitos.
Na Balsa não encontramos nada nem alguém que nos informasse do sucedido. Viramos à esquerda, pela EN-323 em direcção ao centro da localidade mas depressa desistimos. Voltamos à EN-15 em sentido contrário e viramos á direita pela Estrada Municipal 1254 em direcção a Souto Escarão e nada. Quase desistíamos mas faltava explorar o desvio para Fundões e foi o que fizemos. Escassos duzentos metros percorridos e a presença de algumas pessoas na estreita via municipal indicou que estávamos próximo do objectivo.
Assim era de facto. Referenciamos o local no interior do pinhal e após umas dezenas de metros percorridos por um caminho em terra na densa floresta deparámo-nos com o cenário já descrito. O automóvel, um Citroen CX já com bastantes anos de uso, estava trancado e a chave na ignição, o que dificultava qualquer tentativa de identificação do ocupante. E relativamente à viatura nem pensar porque naquele tempo a identificação do proprietário demoraria pelo menos duas semanas. Contudo, uma tentativa de abertura da mala foi bem sucedida e permitiu aceder ao interior do automóvel e ao bilhete de identidade que continha o nome dos pais e referia ser natural de Vila Verde. Mesmo assim nenhum dos presentes nos soube dizer quem seriam os familiares mas alguém alvitrou que poderia ser filho de um senhor de Vila Verde, de nome igual ao que constava no documento, que andava a estudar em Vila Real.
Vila Verde é a freguesia mais a norte e com maior extensão do concelho de Alijó. Contrariamente às restantes, bastante concentradas, caracteriza-se por ser composta de diversas e dispersas aldeias: Freixo, Perafita, Jorjais, Vale de Agodim, Balsa, Fundões e Souto de Escarão, além da maior e da qual recebe o nome. Fomos no seguimento desta pista.
Um guarda permaneceu no local e com o motorista dirigi-me a esta aldeia para dar a trágica notícia aos familiares. Encontramos o casal junto da residência, tinham acabado de chegar do campo. É uma tarefa difícil transmitir uma informação do quilate daquela que me tinha levado ali e para mim representava um sério constrangimento. Contudo, comecei prudentemente por perguntar se tinham um filho em Vila Real ao que me responderam, visivelmente apreensivos, que sim. O caso ficava mais complicado mas tentei adiar o choque ainda mais um pouco mostrando-lhes a fotografia do malogrado jovem. Foi notório o alívio no semblante daqueles pais quando me afirmaram que não, não o conheciam. E mais aliviado fiquei eu por me sentir desobrigado de cumprir com o doloroso dever de lhes comunicar o óbito do filho...
Assim voltamos à estaca zero. Mas não me dei por vencido. Com o nome, data de nascimento e filiação era possível saber algo mais e o radiotransmissor do jeep cumpriu bem a sua função. Forneci os dados de que dispunha ao Posto e solicitei que alguém se deslocasse ao Registo Civil explorando a única pista de que dispúnhamos para localizar a família do defunto. A resposta foi célere e ainda antes de chegarem ao local as autoridades sanitária e judicial já eu tinha na minha posse os elementos que me permitiam contactar os familiares. Tinha nascido efectivamente em Souto de Escarão mas, de tenra idade, os pais tinham ido residir para o Porto e tinham perdido os laços com o lugar de origem onde apenas se encontravam alguns familiares já bastante afastados. Dei então instruções para no Posto desenvolverem os contactos com vista a informar a família do sucedido.
A minha atenção voltou-se agora para o cadáver e para o cenário da tragédia. Havia algo que não encaixava na hipótese de suicídio: a pistola encontrava-se sobre o abdómen mas com a coronha voltada para o lado esquerdo, a culatra para baixo. O suicida disparou com a mão direita e o mais lógico seria a arma cair para o mesmo lado, tendo em atenção que a detonação produz uma determinada força para a retaguarda… E não faltava à minha volta quem explanasse intrincadas teorias dignas de um comissário Maigret, de um Sherlock Holmes ou de um Hercule Poirot.
Procedi à recolha da arma com o necessário cuidado para não danificar quaisquer vestígios que pudessem trazer luz ao caso e nessa tarefa algo seguro na mão esquerda do cadáver me despertou a atenção. Retirei com cautela o papel que despontava por entre a palma da mão e o polegar. Era uma fotografia tipo passe de um menino que aparentava ter dois ou três anos de idade. Tinha escrito no verso - perdoa-me, meu filho!
Depois de promovidas todas as formalidades legais procedeu-se à remoção do cadáver para a morgue e do automóvel para o parque do posto à ordem do Tribunal, para onde foram enviados todos os objectos passíveis de constituir prova da ocorrência, nomeadamente a arma e a fotografia, acompanhados do respectivo auto.
A arma foi reclamada pelos Serviços Prisionais a cujo corpo de polícia pertencia o malogrado jovem e o automóvel entregue alguns dias mais tarde à viúva.
Nunca consegui explicação para o facto do suicida se deslocar desde Matosinhos até aos confins do Alto Douro, embora o Delegado de Saúde fosse peremptório na explicação em que relacionava o facto de ter nascido nas proximidades com a determinação de pôr termo à vida, certamente numa fase de grande conflitualidade interior e, certamente, fortes motivações externas de ordem social ou afectiva. A hipótese de crime nunca foi levantada e até na minha mente se desvaneceu em face da mensagem escrita no verso da fotografia daquele menino, cuja imagem terá ficado retida no último olhar daquele cadáver, aparentemente vazio e distante.

Coimbra, 29 de Outubro de 2008
03 de Novembro de 2008

domingo, 2 de novembro de 2008

Os Aduladores da Gravata

O insucesso no condado

Afonso Henriques, o primeiro régulo deste nosso condado, por birra, por avidez, zangou-se com o avó e com a mãe e quis governar ele este povoléu tacanho e adverso ao belle esprit. Como o Minho é pequeno até para os que cá vivem, quanto mais para os que vêm, atirou-se para sul a conquistar as terras da mourama. Espetou a lança em Lisboa e disse: «Aqui agora mando eu!». E esta frase foi passando de boca em boca pelos seus sucessores até agora. E parece que ainda é uso dizê-la...
É por uma pesada pedra em estado de desintegração do muro deste condado que invitarei a seguir os raciocínios e os factos que se seguem.
Há cerca de dois anos fez-se um estudo exaustivo da instituição ensino em vários países do mundo: africanos, asiáticos, americanos e europeus. Portugal foi um dos países da lista. Chamou-se ao programa Literacy, ou, em português, Literacia. Seleccionaram-se algumas escolas espalhadas por todo o território nacional, meio urbano, província, interior, ilhas. Dos alunos escolheu-se um back-ground razoável, de vários extractos sociais e culturais. Fizeram-se testes aos alunos no domínio da escrita, da leitura e da compreensão textual. Os resultados saíram este ano (1993) e são muito piores do que se esperava: Portugal está no fim da lista.
90% dos jovens que saem da escolaridade obrigatória não lêem livros nem jornais e, nos testes, revelaram total incapacidade para compreender um simples enunciado escrito. 50% dos alunos que seguem os estudos nas universidades revelaram grandes dificuldades na escrita e na compreensão textual. Procuram-se razões, bodes, expiatórios. Estes são, como sempre, os professores, porque o aluno, coitadinho, não pode aprender o que não lhe ensinam. E agora, cada vez mais, por uma política de poupança e de aparências, os jovens saem do ensino obrigatório quase analfabetos. Nada se exige deles e, para obrigar os professores a passar aqueles que não atingiram os objectivos mínimos, sobrecarregam-se com burocracia. Poupando por um lado, gasta-se pelo outro: toneladas de papel são dispendidas em cada período no preenchimento inútil de fichas de avaliação que ninguém lerá e que em nada contribuirão para a recuperação dos alunos.
O importante é que a UE pense que cá no condado não há insucesso! E para iludir as estatísticas, inventam-se novas avaliações, novos programas, novas carreiras docentes a cheirarem a mofo. E não se pensa que o insucesso possa estar em casa de cada criança, de cada jovem. Os milhares que se esbanjam a pagar a técnicos
e pedagogos para se reformularem sistemas de ensino impossíveis, porque não gastá-los na dignificação das famílias com menos recursos? Porque o insucesso escolar começa em casa, na má situação económica e na ignorância dos pais, no desacompanhamento e no abandono a que as crianças são votadas em casa.
Aventam-se hipóteses para o grande sucesso do ensino na Finlândia (aquele país ao lado da Suécia). Há grande estabilidade económica, cultural e afectiva na maioria das famílias. As que possam ter dificuldades são acompanhadas por psicólogos e ajudadas financeiramente pelo Estado. Os professores, coisa importante, não podem leccionar enquanto não tiverem o Mestrado. (Aqui no condado, qualquer bicho careta com o 11º ano já é professor. E temos até, advogados a darem Português, engenheiros de Construção Civil a darem Matemática, meninas da Alliance Française e meninos do Instituto Britânico a darem Francês e Inglês, sem terem uma noção do que é a pedagogia.) E depois são os emolumentos. Na Finlândia um professor ganha muito bem, sem ter de se preocupar em arranjar biscates.
Quantos professores neste condado, para «ganharem mais algum», não montaram uma boutique, uma loja de electrodomésticos, não são angariadores de seguros? E, claro, a ida à escola, o contacto com os alunos torna-se, por absurdo, um passatempo. Porque a verdadeira vocação deles é o comércio. E quantas vezes esse comércio começa nos muros da escola!... A sala de professores torna-se, assim, num estendal de langerie feminina, servindo ao mesmo tempo de boutique, ourivesaria e loja de miudezas.
José Leon Machado, 1993
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/adulad19.htm

As Velhas são o Diabo


Ninguém case com mulher velha. As velhas, ainda que pareçam santas, são o demónio. Que o diga o Frederico. Tinha feito casa e perdeu-a por via da mulher, mais velha do que ele trinta anos.
Este disparate de idades pareceu acertado ao Frederico no dia em que se casou. Ele era um rapaz doente e pobre. Tinha-se estreado como cavador, mas não provara bem na enxada. Derreou-o a primeira cava para toda a vida. Era um pelém. Desistiu da vinha e fez-se comerciante. Melhor dizendo, fez-se feirão, porque a palavra comerciante é fina de mais para se aplicar ao modo de vida do Frederico. Feirão, sim porque o negócio do Frederico era vender na feira porcos de criação. Achou que fez bem, casando com uma velha, porque essa velha tinha alguma coisa de seu. Podia aumentar-lhe o negócio com o dote e dar-lhe respeito à casa com os cabelos brancos.
Embora doente, o Frederico era activo e até ambicioso. Madrugava como um pássaro e só adormecia pela noite dentro, depois de ter feito de cabeça as contas do negócio.
Esta labuta, em vez de o enfraquecer, fazia-o homem. O ar livre, respirado de costas direitas e independente, por feiras e caminhos, abria-lhe o apetite. Não tinha cor, mas, de ano para ano, ia-se tornando menos seco e mais robusto. Quando casou, já não era o rapazinho débil que a primeira cava derreara. As moças, quando o viram na igreja receber-se com uma velha, exclamaram: mal empregado!
Não há dúvida que o casório do Frederico foi interesseiro. A velha tinha de seu uma casa ampla, situada fora do povo, mas o quintal... era o melhor pedaço de chão da freguesia. De todas as vezes que o Frederico por ali passava a caminho das feiras, namorava a casa e namorava a cerca. Parecia-lhe que as lojas subjacentes ao prédio e aquele gordo torrão ali ao pé seriam boa cama e refeitório farto para o seu gado. Antes de casar com a proprietária, enamorou-se da propriedade.
Que, valha a verdade, a dona de tão bela regalia – casa e quintal – tinha também seu préstimo. Vivia sozinha e sozinha se desembaraçava de toda a sua lida, que não era pequena. Cavava a horta por suas mãos, fazia de comer, lavava os manachos, ia à lenha, ponteava as meias, remendava as saias e cuidava do vivo como ninguém. O vivo é o porco ou porcos que habitam uma corte. É a biologia sagrada de uma vivenda. O vivo! Significa o ser vivo por excelência. Ora, em sete freguesias pegadas, ninguém cuidava melhor dos entes que grunhem e não vêem o céu do que aquela mulher. O Frederico mercava-lhe as criações a olhos fechados.
Da admiração da obra à admiração da autora mediou um passo. Mulher que tão asseados bichos criava em sua loja merecia que um homem olhasse para ela. Viva! A senhora Aninhas - chamava-se Aninhas - era mulher perfeita.
Destes cumprimentos, destas exclamações sinceras, até ao casamento foi outro passo. A casa, o quintal e a corte passaram por encanto à categoria de empório comercial do Frederico. A loja, povoada de buliçosos bácoros muito limpos, sempre a coinchar com saudades da mama ou fome de lavagem, parecia uma creche de criancinhas ruças. No meio deles, com uma vide na mão, a senhora Aninhas figurava como ama sem touca, mas com uma habilidade, um dedo para aquilo, que espantava o negociante. Com dois ou três monossílabos e umas cócegas feitas com a vide no serro dos inocentes – assim os comandava.
Era manifesta a prosperidade do Frederico em bens comprados ao redor da casa – hoje uma leira, amanhã uma vinha, depois uma mata. Davam-lhe os vizinhos, em suas avaliações mentais um pouco invejosas, para cima de cem contos. Como o vissem assim, tão aumentado de teres, começaram a chamar-lhe Tio Frederico e até senhor Frederico. Tanto tens tanto vales.
É raro que o homem sofra mais do que uma paixão. A paixão do Frederico era o negócio. Amava a mulher como auxiliar da sua prosperidade. Punha-a, no que é consideração, acima do cavalo que o levava à feira. Extasiar-se, só se extasiava diante dos bácoros, que representavam dinheiro. Chamava-os – bicá, bicá – com ternura utilitária.
A mulher não era assim. Vivia para o marido. Solteira até aos cinquenta anos, delirou-se quando se viu casada... e casada com um rapaz novo! Cheia de lágrimas de júbilo na face arregoada pelos anos, arrumava a casa e fazia o jantar do marido. Por amor dele, tornou-se avarenta – sem deixar de ser limpa. Queria-lhe como filho e como esposo. Sabendo-o de compleição delicada, alimentava-o a preceito com ovinhos crus furados com uma navalhinha. Obrigava-o a bebê-los assim, que era, na opinião dela, como faziam melhor. À noite, como o sentisse exausto das jornadas, não se punha a maçá-lo com candonguices. Deixava-o adormecer a contemplá-lo como as mães contemplam os filhos adormecidos no colo.
O Frederico nunca se comovia com a ternura da esposa. Estimava-a como consorte, mas não lhe retribuía o dízimo do carinho. O fito da sua vida era o negócio. A esposa, a casa, o quintal, a corte, os bácoros, eram instrumentos do seu ganha-pão. Estava satisfeito, não arrependido de se ter casado. A senhora Aninhas, ainda que velha, era o seu braço direito na luta que travara contra a doença e contra a pobreza. Era sua sócia. Prezava-a como tal. No dia em que a senhora Aninhas percebeu que não passava de sócia do marido, quis morrer. Lembrou-se do pai e da mãe - teve saudades da vida de solteira. Ter-se-ia arrependido de casar se a não cegasse o orgulho de ter casado com um rapaz novo. Toda desvanecida, evocava a cena do casamento, o nó dado na igreja.
Entretido com o negócio, o Frederico não pensava na mulher. Quando ia pelos caminhos fora, no passo travado do cavalicoque, à cata de porcos finos para criação, pensava em porcos. Nem nas feiras, no auge do barulho, a imagem da mulher lhe acudia. Era um feirão. Movia-o a ânsia de feirar.
Hoje uma vinha, amanhã um campo, depois uma tojeira ou um mata-reco, a pouco e pouco o Frederico ia juntando as peças de um casal formoso. Parecia-lhe, de cada vez que comprava uma propriedade, que aumentava a força física. O desaire sofrido na primeira cava ia vingando.
Toda a energia do Frederico se aguçava no faro do dinheiro. Sabendo-o casado com uma velha, algumas raparigas novas, vestidas de seda vegetal, diziam-lhe de soslaio a sua graça quando o viam nas feiras. Sem lhes dizer vade-retro, sorriam-lhe de vontade, mas o sorriso dele era indulgente, não conivente com o intuito das moças.
A senhora Aninhas não acreditava na inocência do Frederico. Não compreendia que rapaz tão novo jejuasse tanto. Ela não acreditava. Sentia-se preterida por outra ou outras mais novas do que ela. Chamava nomes feios a estas rivais imaginárias. Cheirava a roupa do homem, virava-lhe os bolsos do avesso e inspeccionava-os com minúcia para surpreender qualquer pequena prova de culpa marital. Um dia encontrou um pêlo preto aderente ao colete de pelúcio do marido. Pegou no pêlo, aproximou-o dos olhos do marido e exclamou:
- Está aqui, ladrão! Hei-de pô-lo num relicário até a dona aparecer. Quem ma dera pilhar! Este cabelo é de cigana. Gostas de ciganas, ham?
- Ó mulher, isso não é um cabelo. É uma clina do nosso Mulato, explicou, com vontade de rir, o Frederico.
- Olha, mulher, continuou. O Mulato está na manjadoira. Chega-te a ele e verás que lhe adita a clina.
A senhora Aninhas, meio sorridente, meio confusa, chegou-se a uma janela e soprou o pêlo.
Assim ela varresse para sempre os zelos. Que não varria. Debalde defumava a casa. Debalde mandava às bruxas a camisa do homem para análise. As bruxas davam amiga e que eram precisas rezas e esconjuros: terra de cemitério, sal derramado, sapo cozido, etc. Pobre Aninhas! Cumpria à risca a receita das bruxas. Debalde! Debalde! O seu coração não se aquietava.
Moeu dinheiro a senhora Aninhas para conseguir o apego carnal do Frederico. Embora... Foi contraproducente esse dispêndio. Ele, que a princípio lhe tolerava os ciúmes, a pouco e pouco os aborreceu. Tanto os aborreceu, que os repeliu certa noite com meia dúzia de socos vibrados no rosto velho da senhora Aninhas. Daí por diante, deixou de dormir com ela. Passou a dormir numa tarimba, na loja do Mulato, por cima da manjadoira.
A casa do Frederico ressentia-se desta desavença. Casa que fora limpa antes de a senhora Aninhas se casar e durante anos depois do casamento, deixou de ser casa para ser montureira. Na corte, os bácoros, deitados em más camas, emagreciam antes de ser vendidos, à míngua de refeições pontuais. Cortava o coração ouvi-los grunhir de fome.
O Frederico, homem que fora casto e trabalhador, amoleceu no negócio e deixou-se seduzir pelas moças que rondavam as feiras com o corpo metido em seda vegetal. Emagreceu como os bácoros. Perdeu o apetite.
A senhora Aninhas chorava do coração a magreza do marido. De noite, não dormia. Espreitava-o da janela do quarto para ver se ele saía da cavalariça ou se metia dentro alguma marafona. Os desvarios do Frederico eram perpetrados em Lamego, na Régua e em Vila Real, durante as feiras. Não tinha pacto com vizinha.
Em vão a senhora Aninhas espreitava o Frederico. Nunca o apanhou com a boca na botija, como ela dizia. Uma manhã, porém, da janela do quarto, viu-o cavalgar e partir para uma feira. Responsou-o a Santo António como de costume. Alongou os olhos no rasto do marido. Pôs-se a chorar. Depois olhou indiferente para umas mulheres que passavam debaixo da janela. Provavelmente, iam também à feira. Deixá-las ir... Lá marchava, a rabo delas, sozinho como sempre, o sapateiro da terra. Amigo de passear, ia à vila por cinco réis de nada. Às vezes ia comprar um novelo de fio. Outras vezes, ia comprar meio quilo de sola. Não tinha quem lho comprasse? Farto fosse ele de passear neste mundo e no outro. Atrás do sapateiro, caminhava uma mulher de idade, com o perico do cabelo erecto debaixo de uma mantilha rota. Era a Bártola alcoviteira. Ao lado da Bártola, a olhar para o chão, ia muito melada a Candidinha beata, rapariga linda e bem feita, mas triste como a noite. Que ia ela fazer ao lado de semelhante coira? Não a enojava a sombra de uma coruja? Qual enojava? Olhou a furto para a cavalariça do Mulato, coseu-se com a companheira e lá seguiram ambas por ali abaixo. Ter com quem? No peito da senhora Aninhas, deu-lhe salto o coração. Tate! A sonsa da Candidinha falava com o seu homem.
Ficou a cismar, sem comer nem beber, presa à janela todo o santo dia. Ali ficou até o escurecer. Viu chegar o marido, passar diante da porta do sapateiro, com um rolo de sola debaixo do braço, e, na cauda do cortejo que regressava à aldeia, a sonsa da Candidinha, pisando a sombra da desavergonhada Bártola. Como de manhã, a Candidinha relanceou os olhos à loja do Mulato.
Presa à janela sem comer nem beber, com o peito arfante contra os vidros, a senhora Aninhas, ali especada, assim passou a noite.
Rompia a manhã quando saiu da janela. Tocou o sino às ave-marias, rezou pelas bentas almas. Deitou água num alguidar e lavou a cara. Depois saiu do quarto, entrou a uma pequena sala e abriu uma gaveta. Fechou-a outra vez e fugiu para a rua pelas traseiras da casa. Fez isto tão subtil, que nem o marido nem os porcos deram fé.
Caminhou para a aldeia. Entrou numa rua estreita, deu meia dúzia de passos e logo se esbarrou com a Candidinha, que ia para a missa. Nem bons dias, nem boas tardes. Levantou a mão direita, que levava escondida debaixo do avental. À luz matutina, com um brilho azul, cintilou uma navalha na mão da senhora Aninhas. Foi um relâmpago. A Candidinha caiu redonda, dizendo Jesus e deitando um rio de sangue pelo lado esquerdo do peito. Sangrada, ficou branca como uma açucena.
Quando prenderam a senhora Aninhas, quando a levaram à presença do administrador, quando o carcereiro rodou sobre ela a chave da enxovia, ninguém lhe ouviu um lamento, ninguém lhe viu uma lágrima. Encarava as pessoas com expressão alegre. Voava-lhe ao vento a cabeleira branca como um pendão de vitória.
A senhora Aninhas foi condenada a pena maior. Ao ouvir ler a sentença, deu uma grande risada. Recolheu à cadeia, entre duas praças da Guarda, com a cabeleira branca esvoaçante como um pendão de vitória.
Com a justiça, o homem arruinou a casa, já desfalcada antes do crime por amor dos zelos da senhora Aninhas. No dia seguinte ao julgamento, o Frederico foi à cadeia visitar a mulher. Mal que o viu, a velha atraiu-o às grades com palavras meigas. Ele aproximou-se confiado e comovido, mas a senhora Aninhas, em vez de lhe fazer festas, escarrou-lhe na cara e ainda por cima lhe chamou porco.
Chamou-lhe porco e riu-se como uma doida.
Quando o Frederico, de volta ao lar deserto, a pé, que vendera o cavalo, se queixou aos amigos de tanta desgraça junta, consolaram-no os amigos, dizendo:
- Olha, Frederico. As velhas são o Diabo!

João de Araújo Correia,
(Da Terra Ingrata, 1946)
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